Título: A falência da 'liberdade, igualdade e fraternidade'
Autor: Reali Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/11/2005, Internacional, p. A20

As periferias francesas aos poucos se acalmam. No campo de batalha ainda fumegante, faz-se a conta dos estragos, das vítimas e dos feridos - milhares de veículos calcinados, lojas arrombadas, pacatas famílias francesas ensandecidas ou arruinadas, escolas destroçadas. Juntam-se a isso as feridas espirituais que vão continuar supurando, em silêncio, e atiçarão outros problemas, talvez mais sombrios, dentro de um mês, um ano. E entre as vítimas, a mais considerável de todas: o modelo de integração "à francesa" dos imigrantes.

Podem-se distinguir, na Europa, dois modos de enfrentar o desafio formidável que representa a chegada às praias felizes do "Velho Continente" de milhões de estrangeiros - exércitos de pobres, sem cultura e famintos que deixaram sua Ásia, sua África onde a vida tinha para eles as cores do inferno, convidando-se para o "banquete europeu."

A Alemanha absorveu multidões de turcos. A Grã-Bretanha recebeu negros da África e asiáticos (paquistaneses, cingaleses, etc.), em geral muçulmanos. A França viu afluírem milhões de negros e árabes magrebinos (na imensa maioria, muçulmanos).

Dois modelos: a Grã-Bretanha empregou o chamado "comunitarismo". Ela não procura fundir seus imigrantes no modelo inglês. Pragmática, aceita que os cingaleses, indianos ou quenianos formem, no interior da sociedade, comunidades onde eles devem viver sob a lei inglesa, mas sem abandonar suas especificidades étnicas, culturais ou religiosas.

A França, mais teórica, optou pela via contrária: os imigrantes devem se integrar, tornar-se franceses, esquecer - ou, ao menos, não manifestar - suas singularidades, tradições, cultos, símbolos, etc. É o sonho insano da República: liberdade, igualdade, fraternidade.

Dois anos atrás, um episódio ilustrou bem esse desejo francês de integração dos imigrantes: o véu. Nas escolas (que aceitam imigrantes e não imigrantes indistintamente), havia jovens muçulmanas que iam às aulas com os cabelos ocultos sob o véu islâmico.

A batalha foi terrível. Os muçulmanos diziam que sua religião os obrigava a usar o véu. As autoridades francesas uivavam: "Não. A França é um país oficialmente laico desde a lei de 1905, que dispõe sobre a separação de Igreja e Estado. Se este país é laico, está fora de cogitação aceitar que as jovens exibam na escola as insígnias de seu Deus."

Esse conflito, que assumiu proporções de um drama, era incompreensível para a maioria dos outros países. Mas a razão era simples: a França oferece a seus imigrantes a República, que é una e indivisível e laica. Ela quer fazer de cada cidadão um súdito da República e o véu teria rasgado essa unidade.

Quando a França do século 19 se tornou colonizadora, seu fim não era anexar povos estrangeiros, nem oprimir os negros ou os árabes, nem roubar-lhes seus minerais. Não: o fim era oferecer-lhes este presente inesperado: a República Francesa, os direitos do homem, a liberdade, a igualdade, a fraternidade...

O modelo de integração oferecido aos imigrantes dos últimos 30 anos deriva dessas premissas. Mas é esse modelo que acaba de ser ferido, talvez morto. Em suas periferias, os imigrantes viam uma realidade oposta à das tribunas políticas. Eles viam desigualdade de oportunidades, escolas desiguais, periferias abandonadas.

Um dos garotos que participaram tolamente dos tumultos foi detido pela polícia e interrogado por um juiz. O juiz lhe perguntou por que ele havia feito aquelas tolices. O garoto respondeu: "Porque não quero que me digam 'tu'. Quero que me digam 'vous'. (Na França, só se usa o pronome "tu" em condições de grande intimidade. O tratamento respeitoso e usado com estranhos é "vous" - vós).

É a palavra de um garoto. É uma palavra profunda: o uso indiscriminado de "tu" e não "vous" com um imigrante é uma confissão de que a igualdade é pura mentira (talvez inconsciente, talvez perversa).

A França não procurou, cinicamente, instaurar o comunitarismo quando pretendia rejeitá-lo. É muito mais pernicioso do que isso. A França desejou sinceramente a integração, mas a rigidez da história francesa e as reticências da sociedade desviaram as populações de imigrantes para longe desse milagre.

Se as elites francesas e seu governo pecaram não foi por cinismo, foi por inércia, por incapacidade de olhar por trás da doutrina fascinante da integração, a realidade nua e apodrecendo.