Título: Clamorosa negligência
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/11/2005, Notas e Informações, p. A3

Não foi sem fortes motivos que a Unesco, reconhecendo o Pantanal Mato-Grossense como uma das mais exuberantes e diversificadas reservas naturais do planeta, integrou-o ao acervo de patrimônio da humanidade. A maior extensão úmida contínua do planeta - ou a maior planície alagável do mundo -, hidrograficamente pertencente à bacia do Rio Paraguai, no interior da América do Sul, significa um ecossistema de riqueza excepcional, em muitos aspectos suplantando o da própria Amazônia - e com um potencial turístico imenso, proporcional à sua beleza extraordinária. Por sua inigualável riqueza natural, assentada em um equilíbrio especialmente delicado entre fauna, flora, clima, relevo e regime de chuvas - tudo contribuindo para a formação de um imenso berçário ictiológico, afora a reprodução abundante de incontáveis espécies -, em meados dos anos 1990 o Pantanal despertou uma enorme preocupação preservacionista, pois visíveis eram - e são - os indícios de sua grave degradação. Foi por isso que os Estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul procuraram o governo federal para a realização conjunta de um programa destinado à proteção e recuperação de toda a área. Depois de cinco anos de estudos e discussões chegou-se, em meados de 2001, ao lançamento do mais caro e ambicioso projeto ambiental da história do Brasil. Trata-se do Programa Pantanal, para cujo financiamento o governo Fernando Henrique Cardoso assinou um contrato de empréstimo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no valor de US$ 82,5 milhões, a serem acrescidos de contrapartida de recursos nacionais, em igual montante. Como mostrou reportagem de Ricardo Westin publicada no Estado dessa quinta-feira, esses recursos - num total de US$ 165 milhões - deveriam ser gastos ao longo de quatro anos, para descontaminar os rios, diminuir o assoreamento, proteger a vegetação, construir estradas, alavancar o ecoturismo e incentivar a economia de toda a região. Entrariam da seguinte forma: 50% do BID, 25% da União e 12,5% de cada um dos dois Estados. Depois desse período o contrato poderia ser renovado por mais quatro anos - e assim seriam injetados, para a sobrevivência de toda a riqueza natural pantaneira, US$ 400 milhões até 2009. "Trata-se de um projeto complexo e pioneiro, que honra nossa instituição" - havia dito com orgulho o uruguaio Enrique Iglesias, que presidia o banco à época.

É extremamente lamentável que, tendo a primeira fase do convênio terminado em setembro do corrente ano, o projeto de preservação e recuperação do Pantanal nem mesmo saiu do papel. Dos previstos US$ 165 milhões iniciais foram gastos apenas US$ 4,6 milhões - e somente com juros, taxas do empréstimo e em inúmeras consultorias. Mesmo tendo a possibilidade de obter mais recursos para uma segunda etapa do projeto, o governo preferiu não renovar o contrato - e deixar o Programa Pantanal à deriva. Alega a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que "o arranjo inicial foi equivocado". Mas rebate o conselheiro do BID e diretor da ONG ambiental Ecoa: "O governo Lula passou dois anos e meio dizendo que tocaria o projeto. Como é que de repente descobre que está tudo errado?" E comenta o deputado Sarney Filho (PV-MA), ministro do Meio Ambiente quando o acordo com o BID foi assinado: "Isso mostra que o governo (Lula) não tem sensibilidade nem competência para cuidar da área ambiental."

Talvez não fosse justo acusar a ministra Marina Silva de falta de sensibilidade, visto que ela até se esforçou, pressionando o Planalto e tentando negociar com o BID - sem êxito - para salvar o projeto. Mas nesta área, como em tantas outras, a falta de dinâmica, de objetividade, ou a falta de competência, do governo Lula, para adequar planos e projetos à realidade cotidiana da Administração, resultou em gritante inoperância, que pelos riscos de perda ambiental, social e econômica que implica chega a ser uma clamorosa negligência. O Programa Pantanal não recebeu nem 3% do previsto por contingenciamentos orçamentários - o que, de resto, tem deixado toda a área de Meio Ambiente em estado de quase inanição, com recursos mais do que limitados, insuficientes até para a realização de um mínimo essencial de ações.