Título: Bush e a "boa vizinhança"
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/11/2005, Notas e Informações, p. A3

Pelo menos o presidente americano, George W. Bush, parece ter uma idéia do que fazer em Mar del Plata, amanhã e depois, na 4ª Cúpula das Américas. É o que se deduz da entrevista que concedeu ao correspondente do Estado em Washington, Paulo Sotero. Ele dirá que os Estados Unidos podem ser bons vizinhos, que os países do hemisfério têm importantes interesses comuns e devem preservar a democracia e buscar as vantagens do livre comércio. Aproveitará a viagem para sua primeira visita ao Brasil e Argentina, e ainda passará, na volta, pelo Panamá. Não é uma agenda sensacional, mas é muito mais objetiva do que a pauta proposta pelo governo argentino para o encontro de chefes de governo. De quebra, poderá aproveitar as conversas privadas com os presidentes da Argentina, Néstor Kirchner, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, para tratar de cooperação em pontos específicos e para falar sobre o populismo de Hugo Chávez, o presidente da Venezuela, e outros focos de antiamericanismo na região.

A América do Sul tem ocupado pouco espaço na pauta do governo americano. A segurança interna, a luta no Iraque, a ocupação militar do Afeganistão, a crise infindável no Oriente Médio e os desentendimentos com grandes parceiros europeus estão no topo da agenda.

Em relação à economia, os desafios criados pela ascensão comercial da China e os impasses da Rodada Doha são temas de primeira grandeza. Atolada na mediocridade econômica, a maior parte da América Latina tem sido incapaz de atrair a atenção de Washington. Não há grandes crises na região, mas também não há grandes projetos, desde o congelamento das negociações da Alca.

Bush deverá propor, em Mar del Plata, o relançamento dessas discussões, mas, pelo menos até ontem, a diplomacia do Brasil e a da Argentina resistiam à fixação de um prazo para a retomada dos trabalhos.

Kirchner pedirá a Bush, quase certamente, apoio nas negociações de um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O presidente americano lembrou, numa entrevista concedida em Washington, a ajuda concedida ao governo de Buenos Aires na última crise com o Fundo. "Nossa ajuda foi justificada pela recuperação econômica do país", disse o presidente americano, elogiando a política adotada por Kirchner.

Bush mencionou essa ajuda na entrevista concedida em seu gabinete ao Estado de S. Paulo, ao diário argentino La Nación, ao jornal panamenho La Prensa e à agência espanhola EFE. Em relação ao Brasil, acentuou o interesse comum na reforma do comércio agrícola, um dos pontos mais difíceis da Rodada Doha.

No passado, disse Bush, respondendo a uma pergunta de nossos correspondente, o presidente Lula "manifestou a preocupação de que os Estados Unidos não estivessem dispostos a fazer uma declaração significativa sobre (a redução de) subsídios agrícolas". "Eu fiz e ele apreciou isso. Nós dois ficamos desapontados com a resposta da União Européia." A referência foi bem calculada. Neste momento, Estados Unidos e Brasil propõem uma ampla redução de tarifas de importação de produtos agrícolas. A União Européia aparece do lado oposto, insistindo no protecionismo.

Alianças desse tipo não são incomuns em negociações multilaterais. Não excluem desacordos importantes em relação a outros pontos do comércio. Mas Bush mostrou preparo ao mencionar aquele ponto.

O presidente americano deverá conversar com Lula, em Brasília, neste fim de semana. Para segunda-feira está prevista uma nova reunião ministerial, em Londres, para discussão do comércio agrícola. O assunto estará no alto da agenda comum quando os dois presidentes se encontrarem. Mas Bush levará a conversa, com certeza, para um assunto mais delicado, a diplomacia antiamericana de Chávez.

Não cabe ao governo americano, disse Bush, selecionar amigos para o presidente brasileiro, que tem todas as razões para se entender com os governos vizinhos. "Por outro lado", disse também, "se acharmos que as pessoas estão perturbando o curso normal da democracia, fragilizando instituições como a imprensa livre, não permitindo que as pessoas se expressem livremente, aí nós nos pronunciaremos. E esperamos que outros também o façam." Lula, certamente, é um desses "outros", e tem, segundo Bush, um papel vital para a democracia no hemisfério. A mensagem, portanto, foi antecipada.