Título: A inacreditável Cúpula das Américas
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/11/2005, Economia & Negócios, p. B2

A 4ª Cúpula das Américas poderá ficar na História como a conferência mais chocha, mais inútil e mais patética de todos os tempos, se for mantido o roteiro até agora conhecido. A agenda proposta pelo governo argentino, anfitrião do encontro, é um despropósito. Não tem sentido reunir governantes das três Américas para uma declaração a respeito de como criar empregos, quando os principais obstáculos estão nas políticas internas. Mesmo para relançar as negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), uma proposta americana, é um exagero convocar chefes de governo de 34 países. Diplomacias mais sérias e mais competentes poderiam já ter resolvido o assunto e não estariam discutindo os detalhes, agora, às vésperas da conferência. ¿Faltando poucas horas para a reunião hemisférica¿, segundo artigo do ex-presidente Raúl Alfonsín, no jornal Clarín, de Buenos Aires, ¿a chancelaria argentina continua considerando como `temas necessários¿ os relacionados com a distribuição de riqueza, a necessidade de combater o desemprego e a crise de governabilidade.¿

É difícil imaginar, em estado de sobriedade, como se encontrarão respostas práticas a essas questões numa reunião desse tipo. Tão difícil quanto isso é aceitar que diplomatas de 34 países, ou mesmo de umas poucas chancelarias mais influentes, gastem tempo e energia negociando uma declaração conjunta sobre esses assuntos.

A solução de todos esses problemas começa em casa, com a definição de políticas eficientes de crescimento econômico e modernização. A maior parte da América Latina tem fracassado nesse quesito. Até a escolha de políticas de comércio e de inserção internacional passa em primeiro lugar pela clara fixação de objetivos nacionais.

Escolhas como essas foram realizadas com eficiência em vários países da Ásia, que hoje exibem taxas de crescimento econômico invejáveis. Todos pagaram o preço necessário para alcançar seus objetivos.

Abriram mercados, selecionaram com realismo os setores estratégicos, elevaram suas taxas de poupança e investiram segundo critérios claros de prioridade. Resolveram em primeiro lugar o problema da educação fundamental. Souberam absorver tecnologia sem criar reservas de mercado para a produção de conhecimentos que poderiam importar.

Todos ou quase todos os países desse grupo enfrentaram nos anos 80 a crise da dívida externa. Todos ou quase todos afundaram na recessão que acompanhou essa crise. Mas foram capazes de recuperar-se muito mais velozmente que os sul-americanos, fazendo os ajustes necessários e criando as bases para o crescimento.

A Coréia, no início dessa fase, tinha uma economia tão grande quanto a do Estado de São Paulo. A Tailândia, há 20 anos, inaugurava com orgulho, apoiada pelo Banco Mundial, indústrias de tecnologia simples e inteiramente dominada em países como o Brasil e a Argentina. Nas duas décadas seguintes, as maiores potências sul-americanas empacaram, enquanto as pequenas economias da Ásia cresceram aceleradamente.

Brasil e Argentina entraram nos anos 90 com as contas públicas em desordem, elevadíssimas taxas de inflação, baixos níveis de poupança e de investimento, sem crédito externo e sem condições de atrair capitais estrangeiros. Seus governos criaram o Mercosul, uma iniciativa promissora e bem-sucedida nos primeiros tempos. Mas foram incapazes de conduzir a integração regional no único rumo que valeria a pena.

Em vez de estabelecer as bases de uma economia mais produtiva, mais criativa e mais preparada para a inserção internacional, seus líderes políticos fizeram do bloco regional um obstáculo a toda iniciativa mais audaciosa. Nem o acordo comercial com a União Européia foi concretizado, embora os europeus fossem considerados, ingenuamente, parceiros mais cordatos que os norte-americanos.

As maiores economias da América do Sul foram incapazes de coordenar suas políticas. O Brasil abandonou a armadilha das bandas cambiais em janeiro de 1999. A Argentina persistiu no erro do câmbio fixo por mais tempo. A indústria brasileira, apesar das dificuldades, investiu mais e melhorou sua eficiência desde o início dos anos 90. A indústria argentina deixou-se levar pelo engano da prosperidade criada nos primeiros anos da paridade cambial. O acesso fácil ao mercado brasileiro, na fase inicial do Mercosul, também deve ter contribuído para sua acomodação.

O erro seguinte foi levar ao impasse a negociação da Alca, em 2003, quando a prioridade ao Mercosul, para o governo brasileiro, deixou de ser parte de uma estratégia e se converteu numa opção ideológica. Essa mesma opção tornou inaceitável a conclusão de um acordo comercial hemisférico.

Outros governos, com maior realismo, buscaram acordos separados com os Estados Unidos. Um desses, o chileno, concluirá em breve um acordo com a China. Esse acordo terá custos para os vizinhos, incluído o Brasil, que ainda paga o vexame de haver reconhecido a China como economia de mercado.

É este o pano de fundo da 4ª Cúpula das Américas e de sua pauta inacreditável.