Título: A receita da desigualdade
Autor: Hugo Leal
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/10/2005, Outras Opiniões, p. A11

O último Relatório de Desenvolvimento Humano, da ONU, traz um diagnóstico preciso e cruel da crise social brasileira. Nosso país é o quinto mais desigual do mundo: perde, neste triste ranking, apenas para países da África - a Namíbia, o Lesoto e a República Centro-Africana - e para o vizinho Paraguai. Pelo documento, preparado pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), os 10% mais ricos do Brasil faturam 68 vezes mais que os 10% mais pobres. Não é necessário ser sociólogo ou economista para constatar que a redução desta absurda desigualdade deve ser o centro de qualquer política econômica desenvolvida no país.

Priorizar a distribuição de renda, entretanto, é uma promessa que os brasileiros ouvem desde os governos militares. Na década de 70, os teóricos do milagre econômico defendiam que era necessário fazer o bolo crescer para, só então, distribuir as fatias à população. O bolo cresceu, os mais ricos ficaram mais ricos, comeram o bolo e o milagre acabou. Quando a democracia voltou, o Brasil já estava a caminho de tornar-se um dos países com a maior concentração de renda do mundo.

A distribuição de renda continuou sendo usada apenas como uma figura de retórica. Acompanhamos reiteradas manifestações nos oito anos de Fernando Henrique e agora na gestão Lula sobre as preocupações do governo com o tema. Mas a lógica econômica pouco mudou. A prioridade é a política monetária: juros altos para segurar a inflação. Neste ritmo, o Brasil aprofundou seu endividamento, particularmente na era FH, e aumentou o lucro dos bancos. A taxa de juros permanece na estratosfera com a gestão petista: o setor produtivo permanece sufocado, o nível de emprego pouco melhora, a renda do trabalhador não cresce.

O mesmo relatório do PNUD mostra que o Brasil é um dos países com a pior distribuição de renda do mundo - à frente apenas de seis nações africanas e da Guatemala. Os pobres brasileiros têm renda menor que os pobres do Vietnã, apesar deste país asiático ter uma renda média menor que a brasileira. O propalado espetáculo do crescimento, portanto, só terá efetivo impacto na melhoria das condições de vida dos brasileiros se vier acompanhado por iniciativas que assegurem a distribuição das riquezas.

De acordo com os estudos do PNUD, no caso do Brasil, a transferência de 5% da renda dos mais ricos para os mais pobres poderia tirar da miséria 25 milhões de pessoas. Não há dúvida que esta deveria ser a prioridade de qualquer governo comprometido realmente com a transformação da sociedade: programa de elevação constante do salário mínimo; ampliação do micro-crédito em todas as regiões do país; incentivo ao setor produtivo para garantir a geração de emprego e renda; e investimentos pesados em educação e saúde. E, é claro, a redução da taxa básica de juros que, mantida no patamar atual, impede todas essas iniciativas.

Essas diretrizes não excluem, contudo, o desenvolvimento de políticas compensatórias hoje existentes. Programas de transferência de renda - realizados por governos estaduais, prefeituras e pelo próprio governo federal - e ações como restaurantes populares ou farmácias populares, embora não reduzam a desigualdade, são fundamentais para a sobrevivência da parcela mais pobre da população e para evitar o agravamento da tensão social.

Diariamente, os jornais trazem retratos desta crise: crimes violentos, brigas de gangues de jovens, invasões de propriedades, mortes causadas pelo caos nos hospitais públicos, escolas sem professores, filas de desempregados, compra de votos. Mas essas mazelas são conseqüências - herança de seguidos governos, inclusive o atual. A causa, a raiz de tudo isso, é a desigualdade.

Desde o começo de 2004, o Brasil voltou a registrar números positivos na economia. O bolo voltou a crescer. Mas o governo do PT mantém a fórmula que concentra a renda nas mãos de poucos. Será que mais uma vez o bolo vai ser dividido entre os mesmos setores que engordaram nas últimas décadas? É preciso mudar a receita para que haja a distribuição das fatias pela população e para que o Brasil encontre o caminho do desenvolvimento para uma sociedade mais justa e fraterna.