Título: Os 20 anos da Lei da Ação Civil Pública
Autor: Rodrigo César Rebello Pinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Há duas décadas irrompia no cenário jurídico brasileiro a Lei da Ação Civil Pública (a LACP, Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985). A expressão ¿ação civil pública¿, criação do jurista italiano Piero Calamandrei, já constava da antiga Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº 40/81), mas é na LACP que o instituto ganha destinação específica: a tutela dos interesses transindividuais ¿ os interesses difusos e coletivos.

Debilitada por um veto presidencial, a redação original da LACP permitia apenas a defesa de interesses relacionados ao meio ambiente, ao consumidor e aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Mas a Constituição federal, o Código de Defesa do Consumidor e outras leis esparsas ampliaram o campo de incidência da ação civil pública, que se tornou instrumento de defesa de quaisquer interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

Saudada com entusiasmo pela comunidade jurídica, a LACP é produto da reestruturação do Estado de Direito e de uma salutar oxigenação das instituições políticas brasileiras. Ela coincide com a evolução conceitual e a positivação dos direitos humanos e reflete a tendência legislativa de abandonar os lindes estreitos do privatismo e abraçar as questões de maior relevância social.

Na trilha das class actions norte-americanas, a ação civil pública constitui notável avanço na solução dos conflitos emergentes da sociedade de massa ¿ a explosão demográfica, a sofisticação das relações de consumo, a poluição em larga escala, os atentados contra a ordem econômica ¿, abrindo espaço para que valores sociais historicamente carentes de proteção tenham acesso à Justiça.

No mesmo ambiente de efervescência cívica em que nascia a LACP, o Ministério Público vivia um momento de extraordinária evolução, consolidandose como instituição responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais e sociais indisponíveis. Com perfil renovado e estrutura legal sem paralelo no mundo, o Ministério Público brasileiro recebeu um vasto mosaico de atribuições, dentre as quais se destaca a missão constitucional e legal de promover a ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. E, às expensas do trabalho incansável de promotores e procuradores, a instituição não se esquivou da árdua tarefa que lhe foi atribuída.

É verdade que o Ministério Público não é senhor absoluto da ação civil pública. Projetando uma saudável conjugação de forças entre os diversos segmentos da sociedade, a LACP outorgou a pessoas jurídicas de direito público interno e associações civis a legitimidade concorrente para a propositura da ação. Mas a experiência forense revela que o Ministério Público, nestes 20 anos, consolidou a condição de protagonista na tutela dos interesses transindividuais. À desconfiança inicial, que focava uma suposta falta de especialização e aparelhamento, o Ministério Público respondeu com a célere criação de órgãos de execução em áreas específicas e, à mercê de um dinamismo ímpar, logo se converteu em tutor por excelência dos interesses transindividuais. Prova inconteste desta preeminência é o fato de que, no Estado de São Paulo, cerca de 90% das ações civis públicas têm o Ministério Público como autor.

Merece ser comemorado o vigésimo aniversário da LACP. OMinistério Público do Estado de São Paulo promoverá, ao longo dos próximos meses, campanha institucional que, sob o título Histórias Extraordinárias, mostrará à população vários casos em que a atuação de promotores e procuradores de Justiça possibilitou, com fundamento na LACP, a defesa de vários interesses difusos e coletivos. Dentre eles, merecem destaque as ações do Ministério Público paulista para a recuperação do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, na capital, que se encontrava abandonado por seguidas gestões municipais passadas, e para a redução do número de vereadores de Mira Estrela, no interior do Estado, decisão confirmada pelo Supremo Tribunal Federal e estendida pelo Tribunal Superior Eleitoral a todos os municípios do País, propiciando significativa economia para o erário.

Este, no entanto, não é apenas o momento de contabilizar triunfos. Em busca da efetividade da coletivização do acesso à Justiça, é preciso refletir sobre as impropriedades técnicas que os quatro lustros de aplicação concreta da lei trouxeram à superfície. Deve suscitar um amplo debate a proposta de elaboração de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, idéia que ganha corpo nos círculos acadêmicos. E, acima de tudo, há riscos que precisam ser conjurados: abusos pontuais na utilização deste mecanismo processual não podem servir de pretexto para alterações legislativas preordenadas a inibir a atuação do Ministério Público; e merecem veemente repúdio as invectivas de forças retrógradas interessadas em restringir o espectro de incidência da ação civil pública ou minimizar os efeitos da tutela jurisdicional dos interesses da coletividade.

Na lição da eminente processualista Ada Pellegrini Grinover, a LACP ¿revolucionou o direito processual brasileiro, colocando o País numa posição de vanguarda entre os países de civil law¿. O toque de Midas do legislador, porém, é condição necessária, mas não suficiente para a eficácia da espécie normativa. No magistério de Norberto Bobbio, ¿que uma norma exista como norma jurídica não implica que seja também constantemente seguida¿. Daí a importância da conscientização da sociedade e do constante aperfeiçoamento do Ministério Público na tutela dos interesses transindividuais, para que a ação civil pública seja, de fato, um mecanismo privilegiado de consolidação da democracia e dos valores sociais constitucionalmente prometidos.?