Título: A precária política fiscal
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/11/2005, Notas & Informações, p. A3

É muito provável que as contas públicas encerrem este ano com um superávit primário (receitas menos despesas, excluídos os juros da dívida) de cerca de 5% do PIB. Ainda que fique pouco abaixo desse número, será um resultado estupendo, especialmente se se levar em conta que, em 1997, essas contas registravam um déficit primário de 1% do PIB. Em oito anos, o setor público terá alcançado um ajuste em suas finanças correspondente a 6% do PIB.

A despeito desses números, a gestão financeira do setor público é precária. Os responsáveis pelas finanças públicas com freqüência lançam mão de artimanhas para impor à sociedade novas formas de tributação, muitas vezes alegando finalidades nobres para o recurso arrecadado. Mas o dinheiro recolhido é desviado para outros fins. O governo agiu desse modo quando criou o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) e instituiu a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide).

Como comentamos em editoriais anteriores, os recursos do Fust deveriam ser aplicados na extensão dos serviços de telefonia a pequenas comunidades e à população de baixa renda, além de levar a internet a hospitais e escolas públicas, e a arrecadação da Cide deveria, entre outras coisas, financiar a melhoria da infra-estrutura rodoviária. Mas nenhum dinheiro do Fust e muito pouco da Cide teve o destino que deveria ter, num claro desvio de finalidade. A maior parte foi usada no ajuste fiscal.

Não se trata de menosprezar a importância para a estabilidade econômica do ajuste financeiro do setor público realizado a partir de 1997, nem de questionar os avanços institucionais observados na área fiscal nos últimos 20 anos, que melhoraram a qualidade da contabilidade pública e culminaram com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

O que se questiona é a qualidade da política fiscal. É uma política ruim, porque está baseada só num dos lados das contas públicas ¿ o das receitas. O que permitiu o grande ajuste dos últimos anos foi o aumento constante da carga tributária, que passou de cerca de 29% do PIB em 1997 para cerca de 37% neste ano. Foi o dinheiro adicional extraído do bolso dos contribuintes que permitiu a geração dos superávits primários que o governo vem anunciando.

Do lado das despesas, onde efetivamente deveria ter sido feito o ajuste, para tornar o custo do aparelho estatal suportável pela população, nada se fez. Ao contrário, os gastos continuaram a crescer de maneira constante. Os gastos primários, que não incluem os juros, aumentaram o equivalente a 2% do PIB, de 1997 a 2004.

Se pelo menos os gastos adicionais tivessem resultado em mais e melhores serviços nas áreas de saúde, educação, segurança, infra-estrutura portuária, malha rodoviária e outras, haveria alguma compensação para os contribuintes. Mas os gastos que cresceram foram justamente aqueles com a manutenção do já enorme aparelho estatal. A fatia destinada aos investimentos, que melhorariam e ampliariam os serviços, diminuiu.

Há problemas estruturais que impedem uma gestão mais produtiva, para o País, das finanças públicas, como a obrigatoriedade legal de determinados gastos e a dificuldade para a redução de outros, como os com pessoal, que crescem de maneira vegetativa. A essas limitações o atual governo acrescentou outro problema: a má gestão dos recursos. O argumento ¿ correto, ressalve-se ¿ de que é preciso buscar superávits primários que permitam a redução gradual da dívida pública atualmente esconde a incapacidade de diversas áreas do Executivo de definir corretamente as prioridades e bem aplicar os poucos recursos disponíveis. Programas importantes, desse modo, ficam parados ou andam muito devagar.

Foi para permitir a expansão dos investimentos que o governo criou o Fust e a Cide, cujos recursos desapareceram nas contas do Tesouro. Sem cortar onde precisa, o governo corta onde não deve ¿ nos investimentos ¿ para financiar o crescimento das despesas primárias. E o contribuinte, que em nome de uma boa causa foi convocado para pagar mais impostos do que já pagava, nada recebe em troca.