Título: Wojtyla e Ratzinger
Autor: Marco Maciel
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

João Paulo II entrou na eternidade, portando, talvez, uma tristeza e, certamente, uma esperança: a tristeza de não haver completado sua missão evangelizadora ecumênica e a esperança de haver desvelado o papa que haveria de suceder-lhe.

Como observou, certa feita, o escritor francês Georges Bernanos, o que nós chamamos acaso talvez seja a lógica de Deus: Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger, amigos de longa data, cognominados "colegas intelectuais"; ambos poliglotas; ambos inspirados escritores; ambos com suas concepções firmemente assentadas em princípios filosóficos e teológicos; e ambos também convictos de que "a estatística não era uma das medidas de Deus", posto que a Igreja não é "uma empresa comercial, que pode avaliar em números se fez uma política de sucesso e se vende cada vez mais" - tal e qual afirmara o ainda cardeal Ratzinger no livro O Sal da Terra.

Conquanto à missão apostolar se associe a do profeta e esta não se circunscreva à de anunciar o Evangelho a todas as gentes, pois o dom da profecia não é somente o de suscitar a esperança em tempos prenhes de incertezas, o papa Wojtyla jamais pretendeu maquiar a severidade da mensagem evangélica a fim de torná-la aceita - como advertiu no primeiro pronunciamento em solo americano, em outubro de 1979: "O verdadeiro amor é exigente; eu falharia em minha missão se não lhes dissesse isso com toda a franqueza."

Não foi por acaso que Wojtyla praticamente haja confiado o governo da Igreja a Ratzinger, entregando-lhe a chefia da Congregação para a Doutrina da Fé, como o "guardião dos dogmas" nas questões doutrinárias e morais - com pontos de vista verticais em temas delicados -, enquanto dava primazia à sua missão evangelizadora.

Não foi por acaso, igualmente, que Ratzinger adotou o nome de Bento XVI, em homenagem a São Bento de Núrsia, o pai do monaquismo ocidental e patrono da Europa, ora envolta numa concepção do mundo puramente científica, racional e materialista, quando houvera construído sua cultura no cristianismo, expandindo-o para os quatro continentes; e também em reconhecimento a Bento XV, o papa da 1ª Guerra Mundial, que lutara por impedi-la a todo o custo e formulara todo um sistema de ajuda aos combatentes.

As dificuldades da Igreja Católica em muitos dos países do globo não amedrontam Ratzinger, que, referindo-se ao papa João Paulo II, revelou parecer "sentir sua mão forte apertar" a dele, e acrescentou: "Parece-me ver seus olhos sorridentes e ouvir suas palavras, dirigidas a mim em particular, neste momento (...). Ele deixa uma Igreja mais corajosa, mais livre, mais jovem. Uma Igreja que, segundo seu ensinamento e exemplo, olha com serenidade para o passado e não tem medo do futuro".

Declara-se Ratzinger "determinado a cultivar qualquer iniciativa que possa aparecer para promover os contatos e o encontro com representantes das diversas igrejas e comunidades eclesiais". E se dirige "a todos, mesmo aos que seguem outras religiões ou que simplesmente procuram uma resposta às perguntas fundamentais da existência e ainda não a encontraram (...), para assegurar que a Igreja quer continuar a tecer com eles um diálogo aberto e sincero, à procura do verdadeiro bem do homem e da sociedade".

Aliás, na sua única visita ao Brasil, como cardeal, afirmou que "conciliar unidade de fé e multiformidade de culturas não é um conflito, é uma tarefa para os que professam a fé cristã".

Aos que aludem a uma "imagem ameaçadora e esclerosada" como causa do "afastamento entre a Igreja e o mundo", Ratzinger reconhece: "Não encontramos a linguagem para nos exprimir na consciência atual." Mas esclarece que a "essência da verdadeira reforma não consiste naquilo que nós próprios fazemos, mas naquilo que nos é dado gratuitamente e que não provém da nossa vontade nem de uma intenção".

E o faz recorrendo ao veio poético de Michelangelo, o genial escultor do Renascimento: "Com olhar de artista, Michelangelo via na pedra que estava diante dele a imagem pura que só esperava para ser libertada e trazida à luz. Para ele, a tarefa do artista consistia apenas em retirar da pedra aquilo que encobria a imagem. Michelangelo considerava a verdadeira atividade artística como um libertar e trazer à luz, e não como um fazer. (...) Assim também o homem deve, antes e primeiro que tudo, receber a purificação, para que nele resplandeça a imagem de Deus - a purificação pela qual o escultor, ou seja, Deus, o liberta de todas as escórias que encobrem seu verdadeiro semblante e fazem com que ele pareça um bloco disforme de pedra, enquanto nele já habita a forma divina".

Na encíclica Fé e Razão, lembrava João Paulo II que, há 2 mil anos, "a encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o tudo se esconde no fragmento, Deus assume o rosto do homem. (...) Agora todos têm acesso ao Pai, em Cristo; (...) Ele concedeu-nos a vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado".

Com a morte de Karol Wojtyla, houve tristeza, mas não luto; silêncio, mas não solidão, porque a graça preenche o vazio e, na sua consumação, o justo é acolhido nos braços do Criador.

Suas visitas ao Brasil nos legaram inolvidáveis lições. Da mesma forma, cumpre não deslembrar os ensinamentos de Sua Santidade aos membros da Pastoral Parlamentar Católica, ao assinalar que aos políticos de uma nação eminentemente católica incumbe zelar pela correta aplicação dos princípios morais que, baseados na lei natural, se acham confirmados na revelação: "Sobre estes princípios apóia-se o verdadeiro bem de toda a sociedade. A mesma Igreja não cessa de orientar as consciências, sem jamais interferir nas opções políticas concretas tomadas livremente, pois esta não é a sua missão."