Título: A polícia esmoleira
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/11/2005, Notas e Informações, p. A3

Descobriu-se, graças a um mero acaso, que a Polícia Militar do Distrito Federal tem comportamento semelhante ao dos chamados frades esmoleiros - aqueles que saíam às ruas pedindo donativos para os conventos. A cobrança sistemática de doações, feita por oficiais da PM a comerciantes e demais empresários de Brasília e cidades-satélites do DF, veio à tona em razão de um pequeno desvio: o soldado Jayme Antonio e Silva pedira a um comerciante a quantia de R$ 32,00, para a compra de um botijão de gás, de que sua corporação necessitava. Mas o soldado pegou o dinheiro e não o repassou para o posto policial, que funciona na Associação Comercial e Industrial de Taguatinga. Uma sindicância foi aberta, o que ensejou à defesa do soldado alegar - e provar - que a prática de solicitar donativos era histórica, naquela corporação policial. Para tanto apresentou 71 ofícios em que oficiais faziam tais solicitações. Os pedidos, formulados em papel timbrado da corporação, eram especialmente de alimentos, bebidas e doces, usados em festas de confraternização de batalhões. Por exemplo, havia um pedido feito pelo comandante da 19ª Companhia Militar Independente, major Almir Santos, para comemorar o aniversário da unidade, no dia 19 de agosto. Constavam dele: 5 mil salgados "de boa qualidade" (alguém haveria de mandá-los de má?), 200 litros de refrigerantes, 600 guardanapos, 600 unidades de copos descartáveis e frutas - fora, é claro, as 15 caixas de cerveja, as carnes e o carvão para o preparo do churrasco. Mas as doações não se restringiam a alimentos, bebidas e demais produtos para festas comemorativas. Entre os "ofícios" da PM a particulares também havia pedidos de colchões, peças de decoração e até de circuito interno para televisão.

Certamente seria exagero afirmar que essa prática se assemelharia à da "cobrança de proteção" feita por grupos mafiosos a comerciantes. Mas é claro que, a esta altura da segurança pública cabocla, comerciantes e empresários se sentiriam um tanto quanto - digamos - inibidos, de se recusarem a atender pedidos em papel timbrado da Polícia, assinados por autoridades incumbidas de cuidar da segurança das comunidades. Por outro lado, não se pode atribuir essa prática à simples falta de recursos, ao miserê (para usar palavra do agrado presidencial) que têm atravessado nossas polícias, cujas remunerações, armamentos e equipamentos disponíveis para o combate ao crime estão cada vez mais defasados em relação aos de que dispõem os bandidos.

De que esta seja uma prática irregular já se deu conta, plenamente, tanto o Ministério Público - que se prepara para ingressar com ação contra sete oficiais da PM que solicitavam doações - quanto o próprio comandante-geral da PM do DF, Renato Azevedo, que determinou a proibição da cobrança e do recebimento de donativos. Mesmo assim, o comandante tentou justificar o costume, salientando que "a comunidade também se beneficiava das festas".

É que para a Polícia Militar isso já é uma tradição, em Brasília - inclusive pedidos de marcas de aguardente, como consta em um dos 71 ofícios mencionados. "Isso ocorre não só na polícia, mas em outras instituições", justifica a Comunicação Social da PM, sem mencionar quais seriam essas outras instituições.

Quem melhor descreveu a falta de limites éticos ou pelo menos de etiquetas no relacionamento entre agrupamentos militares e comunidades foi o escritor peruano Mário Vargas Llosa, em seu impagável romance Pantaleão e as visitadoras, que descreve, na forma de comunicados internos da burocracia de caserna, a implantação de um serviço de prestamistas (acompanhantes femininas a serviço das tropas de fronteira) e em que resultou, para o comportamento militar, esse promíscuo entrosamento comunitário.

Com certeza abordar o tema dos donativos à PM de Brasília por esse ângulo pitoresco seria mais leve e ameno. No entanto, o assunto também dá margem à reflexão sobre um tipo de mentalidade não de todo saudável para a prática democrática e que deriva dos tempos em que os integrantes de instituições "fortes" (no sentido de armadas) tentavam obter vantagens das comunidades civis, dentro do suspeito mandamento segundo o qual "uma mão lava a outra".