Título: Revoltante respeito à lei...
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/11/2005, Notas e Informações, p. A3

A decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - tomada por 3 votos a 2 - de libertar da Penitenciária de Iperó (SP) os irmãos Daniel e Christian Cravinhos, assassinos confessos do casal Manfred e Marisia von Richthofen, foi chocante e mesmo revoltante, para a opinião pública, em razão da extrema crueldade com que foi praticado aquele duplo homicídio. O choque e a revolta, no entanto, deveriam se dirigir - pelo menos na mesma intensidade - à estrutura legal, processual e judiciária que permitiu - ou, melhor, impôs essa aberrante tolerância.

Como se recorda, em 31 de outubro de 2002 os dois irmãos executaram o plano macabro em cumplicidade com a filha do casal, Suzane von Richthofen, namorada de um deles - Daniel Cravinhos. A razão principal do crime foi a oposição que os pais de Suzane faziam àquele namoro, sem excluir o projeto de se beneficiarem dos recursos da abastada família, pela eliminação de seus titulares. Cumprindo o que fora premeditado, Suzane abrira a porta da casa de sua família, no Campo Belo (SP), dando entrada ao namorado, que acompanhado do irmão foi até o quarto onde dormiam os pais de Suzane, abatendo ambos com a maior violência, a poder de pancadas com barras de ferro.

Em 29 de junho Suzane foi libertada, beneficiada por habeas-corpus. Por esse motivo, tanto os integrantes do Ministério Público como os advogados de defesa já esperavam a extensão do benefício aos dois irmãos assassinos. É que se tratava do "mesmo caso" - em que pesem as nuances diferenciadoras de um duplo parricídio, um homicídio a mando, uma cumplicidade criminosa, etc. Enfim, tratando-se de Justiça a isonomia tem razões que até a razão do bom senso desconhece... E, assim, a trinca de jovens facínoras sanguinários volta a viver livre, leve e solta, enquanto aguarda ser chamada para julgamento em júri popular. Mas, por sobre a necessidade de dar tratamento igual a participantes do mesmo crime hediondo, independentemente da "parte" que coube a cada um no sacrifício das vítimas, é preciso ver que há nessa questão um dado crucial, qual seja: a incapacidade de a própria Justiça cumprir seus prazos de julgamento em tempo razoável, evitando que seus réus permaneçam presos, antes de julgados, por períodos superiores aos que a lei permite.

Em outras palavras, é em razão da extrema morosidade da Justiça que a Justiça se obriga a cumprir a lei, mesmo que com isso se torne, paradoxalmente, injusta... e omissa.

É claro que a decisão do STJ é polêmica, suscita divergências - o que já se demonstra pela votação no tribunal, que ficou em 3 a 2. Mas há que se refletir sobre os fundamentos dessa decisão. O que prevaleceu foi o entendimento de que faltou fundamentação ao decreto de prisão preventiva dos irmãos - que os deixou presos desde 7 de novembro de 2003. O relator do processo, ministro Nilson Naves, considerou que não se aplicam mais as justificativas da época, segundo as quais a prisão era necessária até mesmo para garantir a "integridade dos réus" - algo do tipo prender para evitar que sejam linchados. Retenhamos, no entanto, o principal argumento da defesa - tanto dos irmãos Cravinhos quanto de Suzane - no sentido de que a liberdade dos réus "não representa perigo à ordem pública ou à aplicação da lei".

Caberia então indagar: será que essa libertação não significaria um perigo de outra natureza, talvez muito mais grave? Tal perigo seria a profunda descrença na capacidade de o Estado Democrático de Direito realizar, efetivamente, Justiça.

Seria a manutenção da idéia de que rico (ou remediado financeiro) jamais fica na cadeia, por mais torpe ou violento que tenha sido o crime que perpetrou. O importante é não circunscrever o debate público apenas à leniência em relação aos jovens autores de um crime bárbaro, mas sim ampliá-lo para a estrutura pesada, morosa, emperrada, de nosso Poder Judiciário, que leva a essa terrível sensação popular de que acabar com a vida do próximo, mesmo da forma mais traiçoeira, violenta e cruel, custa até muito pouco, em termos de punição (embora possa até custar muito, em termos de bons advogados, claro).