Título: Franceses estão vivendo um psicodrama
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2005, Internacional, p. A14

O fogo se alastra. Na noite de sábado, 1.295 veículos calcinados. De repente, o presidente Jacques Chirac desperta de seus devaneios, toma a palavra e faz um apelo solene à ordem. Resultado: 1.408 veículos queimados na noite seguinte.

É bem verdade que o discurso de Chirac foi uma nulidade, algumas gotas de água benta para apagar um incêndio. Mas mesmo que por milagre ele tivesse sido eloqüente, os veículos ainda assim teriam queimado por uma razão: estamos diante de uma revolta primitiva, rudimentar, sem nenhum plano, nenhum objetivo ou coordenação, pelo menos por enquanto.

Os idiotas que ateiam fogo nem sequer apresentam reivindicações. "Nós num sabe falar", disse um dos amotinados. "Nós só sabe falar pondo fogo." Um outro se dá conta de sua estupidez: "Nós não somos cachorros mas reagimos como cachorros." E todos dizem: "Não sabemos o que queremos, mas temos raiva!" E essa raiva é um micróbio com forte poder de contaminação. Em alguns dias, ela abrasou toda a região parisiense e depois partiu como louca à conquista do interior. Esse efeito de contágio se explica sem ser preciso imaginar uma orquestração clandestina.

O espetáculo desses veículos ardendo e iluminando a noite fascina as cabeças fracas, sobretudo quando a TV o reproduz. Os filhos de imigrantes dos subúrbios (os mais jovens, sobretudo, de 13 a 17 anos), se fascinam, e jogam sua gasolina.

Um outro fator de propagação é a internet onde multiplicam-se os sites e cada um é uma espécie de "Livro dos Recordes de Guinness" competindo em número de veículos queimados e acirrando a competição.

Será possível discernir o sentido dessa revolta incompreensível analisando os alvos atacados pelos amotinados? Os sociólogos concluem daí que eles quebram os carros porque não têm carros e o carro é para eles o símbolo da sociedade de consumo da qual são excluídos. É uma tese absurda porque eles têm carros, carros lastimáveis, mas carros. Aliás, os carros que eles queimam são muitas vezes, senão deles mesmos, de seus colegas. E eles sabem disso. Enfim, o que prevalece é o furor de destruir, o furor do nada.

Outros alvos mais visíveis são as delegacias de polícia, as agências do fisco, prefeituras, etc. Isso é, tudo que simboliza o Estado. Depois de 11 dias, todo político fala da República, da ordem republicana, da justiça republicana. Já os amotinados, à deriva, respondem: "Não queremos a sua República. Ela não quis saber de nós porque nos meteu nos guetos. Estamos fora da República." Bem, não é exatamente o que eles dizem, mas o que exprimem com seus gestos.

Outro alvo são as escolas, escandalizando o resto da população. Justo as escolas criadas para que possam aprender, adquirir uma profissão, sair da exclusão, etc. Mas a análise dos educadores que trabalham nessas zonas é outra. Para eles, o alvo das escolas não foi escolhido ao acaso: a nulidade da instrução dispensada é a causa primeira do desespero e da revolta. A maioria dos jovens da periferia deixa de estudar aos 12, 13 anos não só sem qualquer diploma, mas sem a menor ferramenta mental, e se tornam então desempregados. Erram pelas ruas filiando-se a bandos, roubando um pouco, traficando. Atear fogo às escolas tem este sentido então: "São essas suas escolas que nos conduziram a esse desastre". É um raciocínio injusto. A República criou muitas escolas nesses "bairros de risco", belas escolas que os amotinados sujam. E se é verdade que o ensino dispensado é medíocre, isso é culpa dos alunos, e não da República. Em primeiro lugar, porque as classes são tão duras, tão arrogantes que os professores hesitam em assumi-las. E não é raro um professor com esgotamento nervoso ir embora.

Todos esses sofrimentos são levados ao extremo na medida em que atingem uma comunidade que se distingue da população francesa pela origem e às vezes pela religião. O elemento racial, ou racista, é fundamental no drama. É verdade que a população francesa não é mais racista do que qualquer outra. Mas basta alguns franceses manifestarem nesses bairros sua superioridade, desprezo ou desconfiança para que negros ou árabes se sintam rejeitados pela "totalidade dos brancos." Nesse sentido, as lamentáveis revoltas desses últimos dias vão no sentido contrário ao bom senso, pois se os filhos de imigrantes sofrem por serem considerados perigosos, problemáticos, eles deveriam mostrar que são como os outros, trabalhadores, sérios pacíficos (o que é o caso de 95% deles, aliás). Em vez disso, uma minoria ao abandono queima ônibus, fere policiais, quebra escolas. De estalo, esse racismo relativamente raro que infelizmente existe na França se desenvolve, se expande, ganha novas populações e justifica o degradante insulto do ministro Nicolas Sarkozy, infeliz porta-voz desses franceses exasperados: "A gentalha... Limparemos tudo isso...!" E o racismo, que num primeiro momento não passava de um fantasma, um temor e uma ilusão, torna-se ao fim uma realidade áspera e um câncer.

Estamos em pleno "psicodrama". A partir de um acontecimento muito localizado, a morte por eletrocução de dois jovens emigrantes inocentes, o delírio tomou contra de todas as cabeças, das cabeças de emigrados e de não emigrados. Sobre sensibilidades tão à flor da pele, a menor palavra infeliz, o menor gesto maldoso cai como um ácido , um veneno.

Um último exemplo. Cerca de 80% desses jovens são talvez muçulmanos (negros e argelinos). Essa porcentagem, aliás, cresceu. No começo, essas populações eram freqüentemente agnósticas, mas com a perda total de suas balizas, o Islã se tornou sua identidade.

Sem dúvida, seria razoável propor aqui soluções para um retorno à calma. Não o faremos, porém. No estado de espírito reinante, tanto de um lado como de outro, não há soluções imagináveis exceto o uso da força enquanto a ordem não for restaurada. Mas a ordem tarda.