Título: A banalização do impeachment
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2005, Nacional, p. A6

Interrupção de mandato presidencial não é ato de vontade, diz respeito aos fatos A Ordem dos Advogados do Brasil não é única entidade ou força política a tratar com ligeireza o tema, mas ontem a OAB deu uma contribuição significativa para a banalização do instituto do impeachment como instrumento de defesa da sociedade contra governantes infratores da lei.

Há meses fala-se do assunto como se um processo de interrupção de mandato presidencial fosse algo trivial e dependesse da vontade dos partidos, da estratégia eleitoral de grupos políticos e mantivesse uma relação de causa e efeito com índices de popularidade em pesquisas de opinião.

Um exemplo eloqüente disso foi a "decisão" da oposição, meses atrás, de vetar o debate sobre a questão. Não em função dos dados objetivos - hoje se arrepende, pois vê em retrospectiva que o depoimento de Duda Mendonça reunia fundamentos para tal -, mas em virtude da tática de combate que lhe pareceu mais conveniente à época.

Agora, os adversários do presidente Luiz Inácio da Silva voltam à carga, abordando o assunto sob o mesmo prisma. Vale notar que a "decisão" de voltar a falar em impeachment foi tomada dias antes de a CPI dos Correios revelar a existência de recursos públicos na conexão PT-Marcos Valério.

Os oposicionistas pretendem, com isso, não propriamente interromper o mandato de Lula, mas impedir que ele continue saindo pela tangente e ocupe o merecido lugar de personagem central da crise.

Conseguem, ao invés disso, banalizar o assunto e, por conseqüência, enfraquecer o recurso, ao qual só se pode lançar mão em último e inquestionável caso.

Fica a oposição, então, balançando entre o oito - deixando o presidente deliberadamente à margem - e o oitenta, falando de impeachment ao mesmo tempo em que admite não dispor de dados objetivos para levar adiante a proposta.

Se a idéia é tornar aos poucos a hipótese do impedimento palatável ao gosto popular, corre-se o risco de, quando (e se) for o caso, o questionamento do mandato já ter caído no descrédito e assumido a feição de história corriqueira a respeito da qual se fala no mero intuito de dar uma direção política à crise.

Essa fadiga de material ocorreu em relação à reforma política. Tanto as necessárias mudanças no sistema político-eleitoral foram apregoadas em discursos sem que houvesse empenho genuíno por sua realização que a proposta caiu na vala das manobras diversionistas. Ninguém leva a sério.

A possibilidade de abertura de um processo de impeachment por improbidade administrativa foi rejeitada ontem pelo Conselho da Ordem por ausência, na visão dos conselheiros, de fundamento para responsabilização do presidente Luiz Inácio da Silva pelas irregularidades que vem sendo reveladas nas investigações em curso no Congresso.

Para justificar o ato e não dar a impressão de que ficou no mesmo lugar, a OAB decidiu criar uma comissão para investigar por contra própria as denúncias e, dentro de um mês, voltar a discutir o assunto para, de novo, votar se é o caso de pedir o impeachment de Lula.

E, se não for, o que fará a OAB? Marcará nova votação para dali a mais 30 dias, fornecerá ao presidente um atestado de inocência ou dará o dito pelo não dito e sairá de cena à francesa?

Em qualquer das hipóteses, terá dado ao governo todo o direito de questionar suas convicções e até apontar, na proposta de discussão do tema sem a posse de fundamentos concretos , a intenção deliberada - e algo inconseqüente - de impor um desgaste político ao presidente e nada mais.

De gente que faz da lida das leis o seu ofício esperam-se respostas precisas e não atos para simular participação ativa nos destinos da Nação.

A abertura de um processo dessa natureza não é uma questão de escolha ou de vontade: ou bem existem dados suficientes para justificar a ação, e, portanto, ela se torna um imperativo legal, ou não cabem derivações a respeito.

Se a OAB, que é especialista no assunto, não tem certeza se Lula é passível ou não de responsabilização diante dos fatos já conhecidos, não deveria lançar o tema a debate sob pena de se associar a movimentos políticos erráticos cuja resultante é o reforço da tese da perseguição política que tanto interessa ao Palácio do Planalto e às cercanias por onde transitam José Dirceu e companhia.