Título: O fiasco de Mar Del Plata
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2005, Notas e Informações, p. A3

Muito barulho por nada foi a grande marca da 4ª Cúpula das Américas, encerrada de fato quando a maioria dos chefes de governo, para não perder mais tempo, resolveu debandar. Ficaram em Mar del Plata os negociadores diplomáticos, encarregados de juntar os cacos da conferência para apresentar ao mundo, no sábado à noite, o arremedo de uma declaração conjunta. A imprensa esperou oito horas por um documento chocho, ata oficial de um fiasco político. Faltou acordo sobre o único tema econômico de efetivo interesse regional, o relançamento das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Rejeitaram a proposta os quatro membros do Mercosul - Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai - e a Venezuela.

O encontro confirmou, com absoluta clareza, a distância entre as ambições comerciais do Mercosul, ou de seus atuais governantes, e os interesses da maioria dos demais países do hemisfério. Os quatro sócios do bloco só tiveram como aliado o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Do lado oposto ficaram 29 governos, incluídos, naturalmente, os três do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) - Estados Unidos, Canadá e México.

O isolamento do Mercosul foi realçado quando o presidente do México, Vicente Fox, lançou a idéia de uma Alca sem os países do Mercosul e sem a Venezuela, e que poderá vingar.

Os três países da América do Norte estão integrados comercialmente pelo Nafta. Os EUA concluíram há pouco tempo um acordo com os centro-americanos, estão negociando com a Colômbia, o Equador e o Peru e já têm um pacto de livre comércio com o Chile.

O próximo passo pode ser a integração de todos esses países por meio de um acordo geral. Se isso ocorrer, as preferências negociadas pelos países do Mercosul com seus vizinhos serão erodidas.

Isso já ocorreu em conseqüência dos acordos negociados pelo Chile com os EUA e outros parceiros, mas o governo brasileiro parece não dar importância ao assunto.

O presidente Fox tentou amenizar o efeito de suas palavras sobre a Alca. Lembrou, numa entrevista, o interesse de seu país em participar do Mercosul e fez uma declaração de amor ao bloco.

A declaração pode ter sido sincera, mas não anulou nem tornou menos verdadeira a observação anterior sobre a integração dos demais 29 países.

A semana teria terminado com mais um grande fracasso diplomático brasileiro, se o presidente americano, George W. Bush, não tivesse em Brasília, na viagem de volta, um encontro produtivo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Os dois presidentes conversaram mais longamente do que haviam programado, trocaram elogios e mostraram afinidades políticas em relação a pontos importantes.

O presidente Bush reafirmou sua percepção do Brasil como democracia assentada, capaz de exercer papel estabilizador na região.

Ressaltou, como se previa, a atual convergência de interesses dos governos brasileiro e americano em relação à reforma do comércio agrícola, na Rodada Doha. Com seu protecionismo, os europeus, hoje, são o adversário comum.

Mas, como também se esperava, lembrou que só haverá concessões se a União Européia fizer sua parte.

Bush atribuiu o impasse da Alca, em parte, à resistência de setores econômicos de seu país. Mas não deixou de responsabilizar, também, o governo do Brasil. Assim como parte dos cidadãos americanos, Lula, segundo Bush, tem de ser convencido das vantagens da integração hemisférica, como a de criar melhores condições para enfrentar a concorrência da China e da Índia.

A tarefa não será simples, embora o custo da teimosia do governo brasileiro possa ser muito alto. Em Mar del Plata, Lula não se limitou a afirmar a prioridade das negociações globais de comércio, a Rodada Doha. Segundo ele, os latino-americanos não estão preparados para formar a Alca.

"Na hora em que a gente estiver forte, economicamente estável, vamos poder sentar com os países mais desenvolvidos e fazer acordos que sejam saudáveis para todo mundo." Se esse argumento fosse correto, também a Rodada Doha seria inaceitável.