Título: Máfia do alho
Autor: Xico Graziano
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Ocorre uma verdadeira guerra comercial no mundo. Na briga por mercados, a agricultura brasileira se impõe com competência. Vez ou outra, porém, leva chumbo nas costas. Vejam o caso do alho.

Tempero tradicional da comida mineira, o alho viu seu consumo se generalizar no País. No final da década de 1970, um grupo de japoneses, liderados por Tadashi Chonan, revolucionou a produção a partir de Curitibanos (SC). Variedades caipiras foram substituídas por tecnologia moderna, aprimorando a qualidade comercial. O rendimento por hectare cresceu de duas para dez toneladas.

O abastecimento ainda contava com a ajuda de importações, especialmente do produto espanhol, que respondia por 20% do consumo interno até 1990. A partir daí, a China entrou na jogada. E começou a encrenca.

O mercado chinês é o sonho de consumo dos agricultores nacionais. Com 1,2 bilhão de habitantes, a China não dispõe de novas fronteiras agrícolas. Na sua industrialização, estima-se que cerca de 350 milhões de pessoas deixem os campos e, até 2020, se tornem consumidoras urbanas. Como alimentá-las?

A conta sai gorda. Imaginem cada chinês tomando um cafezinho por dia, um copo de suco de laranja, um bife, uma coxa de frango, um papaia, e por aí vai! Montanhas de alimentos seriam demandadas e os potenciais fornecedores seriam brasileiros. A produção nacional triplicaria, dólares e empregos se gerariam como nunca.

Acontece que o negócio da China tem mão dupla. É verdade que compram uma enormidade de matéria-prima, como ferro e aço, soja e algodão. Mas, calma lá, eles sabem vender também. Que o digam as indústrias do vestuário, de calçados e bolsas, de brinquedos. Produtos chineses entram no País com preços ameaçadores.

Em 1991 alguns atacadistas nacionais iniciaram a importação do alho chinês. Nessa época, contavam-se 14 mil hectares plantados com a liliácea, principalmente em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Mais tarde, a cultura se expandiu para o cerrado do Centro-Oeste e a produção, em 2002, alcançou 100 mil toneladas.

Hoje a área plantada caiu para 8 mil hectares e a produção reduziu-se em 50%. A entrada maciça do alho estrangeiro teve um efeito devastador sobre o emprego, ceifando 24 mil postos diretos na produção rural e outros 16 mil nas packing houses, locais da seleção e embalagem do produto.

Os chineses são gigantes no negócio condimentar. Respondem por 72% do alho produzido no mundo, seguidos pela Índia, com 12%. O Brasil atinge 1%. Resultado: as exportações chinesas são extremamente agressivas.

Até aqui, a história parece comum no contexto da economia globalizada. As importações do bulbo, entretanto, escondem um mistério, melhor dizendo, um logro. Acontece que o governo brasileiro, desde 1996, impôs uma taxa antidumping sobre o alho chinês, exatamente para proteger o produtor nacional contra o preço artificial das importações. O efeito da medida foi positivo durante alguns anos.

Mas, a partir de 2001, o alho chinês voltou a inundar o mercado nacional. Qual a explicação? Liminares judiciais abriram a porteira para as importações, eximindo empresas do pagamento da taxa antidumping. Ficou estranho.

Como em todo assunto jurídico, argumentos complexos se invocam. Entre os produtores, todavia, corre uma certeza: existe um "esquema" de liminares, financiado por um "caixa 2" recolhido na base de US$ 1,50 a US$ 2,00 por cada caixa importada de alho. É comprometedor.

Vejam a grandeza do negócio. Uma empresa importadora, querendo internalizar 500 mil caixas, se dispõe a pagar entre US$ 750 mil e US$ 1 milhão para obter a liminar, papel que a isenta do recolhimento da taxa antidumping. O pedágio é caro. Mas, como a taxa atual soma US$ 4,80/caixa, livrar-se dela significa grande economia.

O governo está ciente do problema e, mais recentemente, pressionado por parlamentares, tenta desmontar o esquema. Os malandros são conhecidos e formam uma máfia que suborna autoridades e determina regras de conduta no mercado atacadista. Nos tribunais superiores, ações saneadoras buscam eliminar a picaretagem. Mas a lerdeza da Justiça é conhecida.

Quem poderia ajudar nesse qüiproquó é a dona de casa. Basta ela valorizar o produto nacional, adquirindo-o em lugar do importado. Fazendo isso, realizando uma escolha consciente de consumo, ela protege o emprego por aqui, não no Oriente.

O problema é que, na gôndola do supermercado, nem sempre se distingue o alho verde-amarelo do concorrente ameaçador. Por isso, será preciso melhorar a informação para o consumidor, esclarecendo as diferenças. Por ora, ressalte-se o básico: o alho chinês tem dentes grandes, brancos, bonitos e pouco sabor. Já o alho nacional é menor, de pele arroxeada, com forte odor. Quem comprar com os olhos vai entrar no chinês, quem utilizar o paladar crava no nacional. A boniteza esconde o embuste.

Tem gente que não gosta de alho, por causa do bafo, que atrapalha o romance. Mas não se deve, como diz o ditado, misturar alhos com bugalhos. Defender o condimento pátrio significa apoiar o emprego no campo. Aqui reside o grande drama. Cada hectare plantado com alho ocupa 20 pessoas.

Acaba de ser anunciado que a Prefeitura de São Paulo lançou um programa para retirar gente da rua. Parabéns pela iniciativa. Somam 3 mil os que perambulam pelos semáforos fazendo malabarismos atrás de esmola. Mal cuidariam de plantar uma boa roça de alho.