Título: EUA e China são parceiros, se não amigos
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/11/2005, Internacional, p. A8

Muitas vezes o passado é realmente um prólogo. A reunião de ontem entre o presidente americano George W. Bush e o líder chinês Hu Jintao parece obscurecida por uma visita, feita no início de 1979, por Deng Xiaoping, que estava excursionando pelos Estados Unidos para celebrar o acordo histórico normalizando as relações entre os dois países. Numa parada nos subúrbios de Atlanta, Deng visitou uma fábrica da montadora Ford que produzia mais carros num mês que a China em um ano.

Consciente da inferioridade econômica de seu país, Deng, então emergindo como o líder máximo da China, disse que esperava transformar a China numa potência industrial até o distante ano de 2000.

"Na China, nós temos a tarefa de transformar nosso atraso e alcançar rapidamente os países avançados do mundo," disse ele. "Queremos aprender com vocês."

Vinte e seis anos depois, essa política de engajamento econômico entre a China e o mundo desenvolvido permanece quase inalterada. A China ainda quer comércio, tecnologia, expertise e investimento para ajudar a criar uma sociedade moderna e próspera. Mas o sucesso econômico retumbante da China alterou a equação.

Hu, o atual líder chinês, precisa fazer um adendo à tirada de Deng: "Nós realmente não estamos tentando dominar o mundo".

"Os fatos provaram que o desenvolvimento da China não entravará o caminho de ninguém, nem representará ameaça a ninguém", disse Hu na Coréia do Sul na quinta-feira. "Ele antes fará bem à paz, estabilidade e prosperidade do mundo."

Talvez, mas a reunião de Bush e Hu acontece no momento em que crescem os atritos em questões como o déficit comercial recorde dos Estados Unidos com a China.

Do ponto de vista da China, as pressões que impeliam Deng permaneceram no mesmo nível. Por outro lado, a crescente riqueza do país trouxe dificuldades para os líderes chineses.

Hoje é duro para eles reivindicarem a liberdade de ação admitida por países ricos para os em desenvolvimento em áreas como proteção ambiental e trabalhista e liberdades civis.

A China é, na verdade, duas economias. É um gigante na manufatura, um importante motor do crescimento econômico mundial que duplicou seu comércio exterior em apenas três anos.

Mas aproximadamente 500 milhões dos 1,3 bilhão de habitantes da China ainda vivem como menos de U$ 2 por dia e a população total está envelhecendo depressa num país onde a rede de segurança social praticamente inexiste.

Dirigentes chineses definiram 2020 como ano de referência para a China alcançar sua meta de "sociedade próspera", e percebem que os laços econômicos com os Estados Unidos são decisivos para chegar lá.

A China "precisa manter um relacionamento estreito com os Estados Unidos para que seus esforços de modernização tenham êxito", escreveu Wang Jisi, um importante exportador chinês sobre as relações sino-americanas no número de setembro/outubro da revista Foreign Affairs. "Aliás, uma parceria cooperativa com Washington é de primeira importância para Pequim."

Wang acredita que a cooperação entre os dois países no combate ao terrorismo após os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington criou uma estabilidade básica no relacionamento.

Para ele, a interdependência econômica significa que se um país sofre, muito provavelmente o outro sofrerá também. Mas ele também descreveu a relação como "acossada por diferenças mais profundas do que qualquer outra relação bilateral entre grandes potências no mundo atual."

Entre outros problemas, disse, a prosperidade crescente da China tornou inevitável seu fortalecimento militar. Isso tem alarmado líderes americanos, entre eles o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, que recentemente fez um discurso questionando os aumentos porcentuais de dois dígitos nos gastos militares chineses.

A preocupação de alguns especialistas da Ásia é que a escalada armamentista na região esteja fazendo aumentarem as tensões com o Japão, e a chance de um conflito com Taiwan.

A China respondeu com repetidas proposições tranqüilizadoras, de Hu e outros, de um "crescimento pacífico." Num discurso recente, Zheng Bijian, um arquiteto da formulação "crescimento pacífico", chamou 1979 de o ano divisor de águas na China.

Naquele ano, disse Zheng, a União Soviética invadiu o Afeganistão "sob a bandeira de uma revolução mundial que era um beco sem saída."

A China sob Deng, acrescentou, optou por se abrir para o mundo exterior. (Zheng não menciona que em 1979 a China também se engajou numa breve guerra de fronteira com o Vietnã.)

Para Zheng, os desafios ao desenvolvimento continuam tão imensos na China que "não temos tempo, energia e necessidade, portanto, para ameaçar qualquer outro povo ou nação."

O desenvolvimento ainda é a peça central da política externa da China. Como Deng, Hu fez excursões baseado no desenvolvimento econômico nos últimos anos.

Ele visitou a África, a Europa e a América do Sul, propondo intercâmbios militares, acordos comerciais lucrativos e prometendo que o comércio com a China será uma proposição em que todos saem ganhando.

No topo de sua lista de interesses estão os recursos energéticos, como petróleo e gás natural, necessários para alimentar o crescimento chinês.

Mas a audiência de Hu está se tornando cada vez mais cética ante os danos ambientais causados pelas companhias chinesas em todo o mundo, que também estão ajudando a financiar conflitos em países como Sudão e Zimbábue.

"Quem observar atentamente verá uma potência ascendente explorando recursos naturais de outros países, estragando o meio ambiente global, firmando acordos econômicos mas fechando os olhos para abusos de governos contra seus cidadãos e não cumprindo promessas", escreveu recentemente em The International Herald Tribune, a diretora de estudos asiáticos do Conselho de Relações Exteriores, Elizabeth Economy.

As questões de poder econômico e militar não são as únicas nas relações sino-americanas. A administração Bush quer que Hu abrace as reformas políticas.

Num discurso feito na quarta-feira, no Japão, Bush advertiu que os cidadãos chineses algum dia exigirão a liberdade política. Mas os líderes chineses estão muito mais preocupados com a estabilidade social em seu país em acelerada transformação do que nos direitos individuais.

Por enquanto, a relação ainda gira em torno de administrar as conseqüências do crescimento da China, que podem ser vistas em todos os Estados Unidos.

Por exemplo, a fábrica de carros que Deng visitou em 1979 ainda está aberta, mas a montadora Ford está reduzindo o tamanho de sua força de trabalho norte-americana enquanto se expande na China. Em 1979, a China produziu 13 mil carros. No ano passado, o número excedeu 5 milhões.

A crença de que os Estados Unidos estão perdendo empregos injustamente para a China é uma das razões porque o Congresso americano deve iniciar a discussão sobre uma barreira comercial contra a China no próximo ano.

No passado, Deng encerrou sua excursão com uma visita à Boeing, nos subúrbios de Seattle. Hoje, a companhia de aviação tem bilhões de dólares investidos em contratos na China. E muitos dos bens de consumo baratos que os americanos desejam são produzidos na China.

Os especialistas não deixaram nada de fora nas previsões sobre o rumo das relações entre China e Estados Unidos.

Mas uma previsão que se revelou errada foi feita num artigo publicado no jornal The New York Times em 1979, o mesmo da visita de Deng. A saber, que a abertura econômica de Deng para os Estados Unidos teria impacto limitado porque a economia chinesa era atrasada demais para decolar.