Título: De ofício, um fingidor
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/11/2005, Nacional, p. A6

Lula não desencarnou do personagem de oposição a quem tudo é permitido, até o devaneio Não tem jeito: o presidente Luiz Inácio da Silva é vocacionado mesmo para o exercício da oposição, e exerce tão competentemente o seu ofício, que o faz contra si mesmo na condição de presidente da República.

Durante as quase duas horas de entrevista ao programa Roda Viva, segunda-feira à noite, Lula teve oportunidade de falar com franqueza, vestir traje completo de mandatário, tratar com maturidade a Nação e, aos três anos de governo, cumprir o papel que lhe cabe ainda por um ano e dois meses exibindo, no mínimo, conhecimento de causa e respeito pelo mundo em volta.

Preferiu, porém, tergiversar, tratar a todos como vassalos mentais de uma realidade moldada à sua conveniência política, mas totalmente distanciada do cenário visto e vivido pelo conjunto da sociedade e até por ele próprio.

Por exemplo, ao mais uma vez aventar a possibilidade de não se candidatar à reeleição, denota a intenção de fingir-se candidato inamovível, quando está apenas se precavendo para o caso de não vir a reunir condições políticas ideais de disputa e, num gesto de efeito, abrir mão de um segundo mandato que, nesta hipótese, saberá perdido.

Lula continua fazendo o mesmo jogo de impressões que sustentou sua trajetória do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo para a Presidência da República em menos de três décadas.

Manipula meias-verdades, maneja emoções - nisso encontrou em Duda Mendonça a parceria perfeita -, usa argumentos fundados naquele tipo de quase-lógica desprovida de fundamento quando submetida à luz da objetividade, sabe como ninguém valer-se de sua origem e "história" para manobrar consciências pesadas desejosas de redenção.

Essa maneira de lidar com as coisas deu certo na oposição, mas de governantes se espera um mínimo de apreço aos fatos e de compromisso com a palavra dita.

Na entrevista de segunda-feira ao programa Roda Viva o presidente Lula outra vez frustrou a expectativa de que pudesse ter desencarnado do personagem a quem tudo é permitido - inclusive ignorar deliberadamente os fatos - pela força do símbolo.

Lula começou bem, fazendo da responsabilidade de um presidente da República a respeito de tudo o que se passa em seu governo uma profissão de fé. "Sabendo ou não sabendo das coisas, o presidente tem toda a responsabilidade", disse, acendendo uma esperança dissolvida logo em seguida, quando expôs sua visão da amplitude dessa responsabilidade: "Tem de mandar apurar."

Daí em diante, o presidente da República só fez desqualificar todo e qualquer resultado das investigações levadas a termo pelas CPIs, cujas existências, sem o menor resquício de cerimônia, assumiu como obra sua para estabelecer contraponto em relação à interdição de comissões de inquérito no governo anterior.

Justiça se faça, do ponto de vista do desempenho, Lula manteve a coerência: respondeu às questões não necessariamente em atendimento ao conteúdo das perguntas, mas conforme seu roteiro de interesse.

Quando foi pego de surpresa, não hesitou em entrar pelo terreno da incongruência total. Por exemplo: estava já se preparando para fazer pouco da gravidade dos pagamentos de caixa 2 assumidamente recebidos por Duda Mendonça quando Augusto Nunes lhe perguntou qual o motivo, então, de o publicitário ter tido seus contratos com o governo cancelados depois da confissão perante a CPI.

Lula ficou alguns segundos mudo, olhou de um lado, de outro e matou sua tese de repúdio a condenações sem provas cabais: "Não era possível continuar com uma pessoa a respeito da qual pairam suspeições."

Da mesma forma mostrou-se coerentemente incongruente ao mudar sua concepção a respeito do uso de caixa 2, reconhecer que o PT cometeu "crime eleitoral" e, ao mesmo tempo, insistir na ausência de provas a respeito do que quer que fosse ou de quem quer que seja enquanto citava o afastamento de mais de 50 pessoas envolvidas em denúncias como prova de que o governo toma providências.

José Dirceu será, na opinião dele, cassado, mas sem provas, apenas por obra e graça do desejo do Congresso de atender à demanda da opinião pública.

Dirceu, segundo Lula, seria "motivo de orgulho para qualquer país do mundo", mas não o suficiente para merecer a presença do presidente no ato de despedida da Casa Civil.

Lula feriu a credibilidade da defesa da lisura dos companheiros ao incluir Waldomiro Diniz no rol dos injustiçados. Na versão do presidente, "nada ficou provado até hoje" sobre aquelas imagens do então presidente da Loterj tentando receber um suborno de Carlos Cachoeira.

Para quem se manteve alheio aos malfeitos e os condena com veemência, o presidente se mostrou bastante familiarizado e à vontade para assumir todas as versões de defesa até agora apresentadas pelo PT. Da tese do crime eleitoral à nulidade de provas, passando pela negativa pura e simples de evidências mais inquestionáveis, e a manifestação de certezas em assuntos a respeito dos quais só pairam dúvidas.

O assassinato do prefeito Celso Daniel é um caso. O presidente não apenas externou a convicção sobre o crime comum, como permitiu-se adotar a insidiosa tática de criminalizar as relações do morto com seus irmãos.