Título: O Brasil das conveniências
Autor: Onofre Carlos de Arruda Sampaio
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Por conveniência, o governo do presidente Lula e seu partido insistem em chamar publicamente de 'erro' aquilo que todo o País, estarrecido, vê como a montagem e operação da mais portentosa máquina de lavagem, desvio de dinheiro público e corrupção política da sua História. Também por conveniência, o ex-presidente da Câmara dos Deputados e um ex- deputado federal, que renunciaram aos seus mandatos, sob a acusação de serem integrantes, 'cum laudae', das bancadas do 'mensalinho' e do 'mensalão', foram recebidos 'em palácio' para auxiliar o governo na eleição do novo presidente da mesma Câmara, instituição que não souberam honrar. Por igual conveniência, o novo presidente da Câmara dos Deputados fez logo questão de dizer que não lhe faltará coragem para absolver os inocentes. Por conveniência, o Partido dos Trabalhadores, tão useiro e vezeiro em propor CPIs, agora tenta evitá-las ou fazer com que não alcancem a própria grei.

Por conveniência se requereu e se efetuou, desde logo, a prisão dos executivos da Schincariol, acusados de crime fiscal, sob a alegação de se evitar o risco de destruição de provas. Por conveniência a Constituição foi atropelada e a casa e o escritório do advogado foram invadidos com fundamento em mandado judicial impreciso, vago e genérico. Por conveniência se montou uma operação de guerra na loja Daslu, acusada de sonegação fiscal, e seus proprietários foram presos, para que não pudessem destruir provas.

Por conveniência, requereuse e se efetivou a prisão do sr.

Paulo Maluf e seu filho, embora nas gravações telefônicas divulgadas não se vislumbre a alegada ameaça a testemunhas, o que o sr. Birigüi, aliás, não é. Por conveniência diversa, não se achou necessário requerer e prender um certo sr.

Valério, não obstante as graves acusações que contra ele pesam e a, amplamente noticiada, atitude de destruição de documentos da sua empresa, que, como se viu, era um brinco de agência de publicidade, ou, talvez, de cumplicidade.

Por conveniência, também, ninguém requereu nem determinou busca e apreensão na sede do PT, de onde se suspeita haver saído do cofre do sr. Delúbio o dinheiro encontrado na cueca de um certo petista, por coincidência assessor do irmão do presidente do partido. Por conveniência saiu-se ileso o sr.

Duda Mendonça, marqueteiro do PT, cuja conta no exterior era municiada pelo sr. Valério, com dinheiro do PT, de origem também, no mínimo, suspeita.

Por conveniência, com muita presteza e adiantamento se requerem e se efetuam, com aparato e publicidade, certas prisões e por diversa conveniência há outras que não se requerem nem se decretam. Por conveniência se autorizam, gravam-se e se vazam conversas entre advogados e seus clientes, ignorando o direito do cidadão ao sigilo dessa comunicação.

Por conveniência se desejou desarmar a sociedade civil, para que ela não pudesse defender-se e por conveniência não se desarma o Movimento dos Sem-Terra, cujas foices, machados e facões são instrumentos de continuada violação da lei, invasão de propriedades, destruição de lavouras, residências e matança de gado. Se não há terra para lavrar nem roças a roçar, para que conveniência servem tais instrumentos? Por conveniência, o partido do presidente foi sempre o maior denunciante do País e o ministro da Justiça diz que a até então muito festejada delação premiada, agora, precisa ser mais bem controlada. Por conveniência, o presidente da República, acossado pelas denúncias contra seu governo e seu partido, diz em Paris que uso de caixa 2 pelos políticos é coisa corriqueira e o ministro da Justiça informa que contas partidárias são ficção e a culpa é dos tribunais, que não fiscalizam. Por igual conveniência, o ministro das Relações Institucionais diz que jogo do bicho, dólar paralelo e dinheiro de caixa 2 usado na política são vistos como atividade normal.

Também por conveniência o Partido dos Trabalhadores está sendo refundado, pelos mesmos que o afundaram, e o seu novel presidente diz que tudo é culpa da legislação, o que pode significar que será convenientemente reafundado.

Por igual conveniência se trabalhou para que seus deputados, indiciados pelas CPIs, renunciassem ao mandato e, por conveniência, em troca disso, se garantiu aos renunciantes lugar na próxima eleição. Por conveniência, o presidente da República diz que seus companheiros indiciados pelas CPIs não praticaram corrupção nem estão contaminados por doença contagiosa.

Como vimos, o Brasil é o país das conveniências. Porém é bom saber que, se decidirmos viver segundo essas conveniências, se não houver reação a este estado de conveniente descalabro, se a sociedade não se mobilizar, se permitir que as suas mais importantes instituições, por conveniência de alguns, tenham minada a sua credibilidade, como está a ocorrer, se essa reação não for forte, organizada e persistente, feita dentro da mais estrita legalidade, ficaremos todos obrigados a conviver com e a sustentar, de ora em diante, muitos outros mensalinhos e mensalões e as cuecas continuarão sendo transformadas de peça íntima em meio de transporte de moeda nacional e estrangeira de origem espúria. Daremos por inaugurada a República da Lambança, dotada de uma magnífica lavanderia e de uma superpizzaria, instituiremos uma novilíngua, segundo a qual indícios de ocorrência dos crimes mais graves, perpetrados contra as instituições, poderão ser eufemisticamente chamados de 'erros', adotaremos um sistema de direitos e garantias individuais 'à cubana', um culto à personalidade 'à la Chávez' e viveremos felizes, enquanto pudermos, lambuzados de farinha, azeite e orégano.

Se isso ocorrer, será apenas por nossa culpa e falta de ação e depois, quando já for tarde para corrigir, bem, aí... só restará lamentar.?