Título: No cruzeiro das almas
Autor: Daniel Piza
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2005, Aliás, p. J8

Um passeio pelas artes e histórias do primeiro cemitério público da cidade de São Paulo

Francivaldo Gomes, o Popó, pára de caminhar quando ouve a pergunta sobre onde pretende ser enterrado. Interrompe o silêncio com uma voz chorosa e conta que já orientou a mulher sobre esse assunto. Quer ficar ao lado de seu mentor, Délio Freire dos Santos, o advogado e historiador que durante décadas foi administrador do Cemitério da Consolação. Caminha em direção ao túmulo dele e faz questão de repetir a história. Novas lágrimas. Francivaldo tem apenas 38 anos. Ganhou o apelido por sua semelhança física com o pugilista baiano e dele se orgulha, porque "ele é um campeão que luta pelo Brasil". Tem três filhos, homens. Aos domingos, vai com a família à missa evangélica, na Igreja Universal. É hoje assessor administrativo e o guia turístico do cemitério. Até 12 de abril de 2002, quando Santos morreu, era sepultador. Coveiro, não. Sepultador. Entre um sepultamento e outro, Popó seguia Santos e, a meia distância, escutava suas explicações para outras pessoas sobre as famílias enterradas ali, as obras de arte dos túmulos, as histórias do primeiro cemitério público municipal de São Paulo. Anotava as dúvidas no dorso da mão com a caneta esferográfica. Depois ia ao ídolo e perguntava: "Doutor, aquela família é importante?" Ou: "Doutor, aquela estátua é de um artista de status?"

Popó tem um jeito formal de lidar com a morte. Termos como "importante", "status", "ilustre" ou "renome" saem a todo instante de sua boca. Como seu homônimo esportista, não resiste ao choro. (Sim, boxeadores e coveiros também choram.) Ao contrário dele, não é de rir. É baixinho, forte, usa pulôver e crachá. Às vezes se refere a si mesmo na terceira pessoa. E se define como um autodidata. Sabe de cor uma enormidade de nomes sepultados ali. Passeia com orgulho por entre as ruas e quadras do cemitério, explicando a turmas de estudantes e curiosos em geral o que sabe, em frases decoradas das preleções de Santos ou dos livros pesquisados na Biblioteca Mário de Andrade. Mas nem sempre foi assim. Quando passou no concurso público para sepultador em 2000, ficou feliz por conseguir emprego depois de tantos anos como porteiro ou jardineiro sem salário fixo, apesar de a família ver com reservas a nova profissão. No entanto, ficou os 20 primeiros dias sem conseguir comer. Tomava suco, engolia no máximo uma salada. O cheiro dos cadáveres lhe revirava o estômago. Não eram poucas as vezes em que chorava junto com os familiares, como quando uma moça leu a última carta da mãe e o fez lembrar da sua própria, que ainda vive lá em Catreús, Ceará. Em outra ocasião, quase morreu sufocado quando um caixão caiu sobre suas pernas e ficou preso às paredes do túmulo, até que os colegas conseguiram tirá-lo.

Aos poucos Popó se acostumou ao trabalho. Passou a adorá-lo quando descobriu o que o cemitério tinha a lhe ensinar. "Isso aqui é um museu histórico a céu aberto", diz. "As pessoas vão para Paris ou Buenos Aires e visitam os cemitérios lá. Aqui, não. Mas isso começa a mudar." Mesmo numa semana como esta, com Dia de Finados, há quem venha não para homenagear entes queridos, e sim para conhecer as atrações do lugar.

O Cemitério da Consolação, inaugurado oficialmente em 10 de julho de 1858, tem uma área de 76.340 metros quadrados; perde apenas para o Araçá, entre os 22 cemitérios públicos da cidade. São 12 funcionários "no campo", diz Popó, e cinco na administração, além dos seguranças. Eles cuidam de cerca de 8.500 túmulos, correspondentes a 115 mil sepultamentos, em 83 quadras. Não tem velório, apenas uma capela projetada em 1902 por Ramos de Azevedo, o arquiteto do Teatro Municipal e outros marcos de São Paulo. Lá estão dois catafalcos, as mesas de madeira talhada onde os corpos ficam meia hora antes do enterro, para a última oração familiar. Mais atrás, fica o escritório da administração. Uma placa informa: o metro quadrado do terreno custa R$ 2.911,50. Há cerca de 70 ainda disponíveis.

O cemitério é uma síntese de São Paulo. Lá estão vários famosos que marcaram sua história, incluindo muitos nomes de ruas e avenidas. Os escritores Mário e Oswald de Andrade e Monteiro Lobato estão enterrados ali, por exemplo. A pintora Tarsila do Amaral. Os presidentes Campos Salles e Washington Luís e os governadores Roberto de Abreu Sodré e Armando de Salles Oliveira. Famílias de industriais como os Matarazzo e os Calfat. O introdutor do futebol no Brasil, Charles Miller, assim como Paulo Machado de Carvalho, nome do estádio do Pacaembu. Os jornalistas Líbero Badaró e Rangel Pestana. De ex-escravos como o abolicionista Luís Gama a nobres como o barão de Pirapitinguy, passando pela marquesa de Santos.

Há também "gente comum", diz Popó. E imigrantes e seus descendentes de todas as latitudes: italianos, libaneses, turcos, alemães, espanhóis, até mesmo duas famílias japonesas. E histórias como a de Ritinha, cujo rosto se vê num medalhão de bronze. Em 1930, quando tinha 14 anos, ela foi morta pelo pai, dr. Synésio Pestana, por ter engravidado do motorista da família. O corpo do pai, morto em 1962, está ao lado. Não há democracia como a morte, que iguala a todos, pobres ou ricos, culpados ou inocentes.

O roteiro de Popó começa pelo túmulo de Mário de Andrade, enterrado com sua família. Uma escultura de autor anônimo, um anjo-mulher em mármore carrara, decora a lápide. Oswald de Andrade tem endereço na mesma rua, a 17. Duas de suas mulheres, Dasy e Maria Antonieta, estão com ele. Mais adiante, está Monteiro Lobato, também enterrado com a esposa, Purezinha, e os quatro filhos, num túmulo discreto de granito preto. O que chama a atenção é a quantidade de flores - orelhinhas e margaridas - que o cobre. Popó conta que são microempresários que vêm pedir apoio para suas iniciativas a Lobato, que, além de escritor, foi dono de editora e investiu em petróleo. A "romaria" inclui também estudantes de Direito do Largo São Francisco, onde Lobato estudou.

O cemitério traduz São Paulo também por esse aspecto. Onde mais se poderia ler numa lápide uma menção a "cruzada antiinflacionária", como se vê no de Octaviano Alves de Lima? E um túmulo especial, com alto-relevo em bronze mostrando o Anhangabaú, para os chapeleiros que trabalhavam na indústria de João Adolfo Schetzmeyer? E uma referência ao "ouro verde", o café, em uma escultura que homenageia a revolução de 1932, no túmulo de Armando Zago? "Um túmulo que dá mérito", define Popó. Os pedidos de ajuda também são dirigidos a Antoninho da Rocha Marmo, que a população chama de "santo Antoninho" mesmo não tendo sido canonizado - o menino religioso que morreu de tuberculose aos 12 anos, em 1930, e a quem existem dezenas de plaquetas com agradecimentos por sucesso no vestibular, por viagens, empregos e até a salvação do cãozinho Pingo. Outro alvo de devoção é Antonio Gonçalves da Silva, o Batuíra, pioneiro do espiritismo no Brasil.

O que Popó mais preza é a arte tumular. Sabe o tesouro que o cemitério contém. Entre os escultores "de status" que mostra, estão italianos como Nicola Rollo, Atelo Del Debbio, Fannucchi, Luigi Brizolara, Materno Garibaldi. Há também artistas mais conhecidos como Galileo Emendabili, autor do Obelisco e, aqui, da escultura de inspiração etrusca O Adeus, para a família Santos Azevedo. Ou como Francisco Leopoldo e Silva, autor do nu Solitudo, para a família Carvalho. "Há diversas obras profanas no cemitério", diz Popó, em alusão aos nus. Ou, ainda, como Rodolfo Bernardelli, que assina escultura no mausoléu de Campos Salles. Há, como na cidade, todos os estilos: gótico, neoclássico, art déco, modernista, contemporâneo.

Dois autores de primeira linha tem obras que se destacam. Primeiro, a Prece de Bruno Giorgi, escultura feita em 1970 para Salles Oliveira, governador e co-fundador da USP. É uma peça alta e esguia, em linha abstrata com influência de Brancusi, sugerindo duas mãos encostadas palma com palma. Segundo, duas esculturas de Victor Brecheret. O Grande Anjo, com asas inspiradas em afrescos do Renascimento, adorna o túmulo da família Botti, ele mesmo também projetado pelo artista, num casamento admirável de bronze e granito. E Sepultamento, originalmente Mise au Tombeau, porque premiada em Paris em 1923, é a obra-prima do cemitério, onde está desde 1934, no túmulo de Olívia Guedes Penteado, a benfeitora dos modernistas. Foi Mário quem a convenceu a comprar o trabalho. Popó diz uma frase de livro, que deve ter lido em suas pesquisas: "É o estilo clássico refinado pelo vigor da arte moderna". Não, é moderníssimo - uma sucessão de volumes estilizados que mostram Cristo, Maria e quatro mulheres, numa composição hierática, a um tempo austera e emocionante.

No extremo nordeste do cemitério, os mausoléus - "túmulos que têm suntuosidade, têm ornamentos", explica Popó - se tornam mais numerosos. Antes, porém, é preciso passar em frente ao "cruzeiro das almas", uma esquina com recuo para colocar velas e flores e rezar aos santos. Os gatos do cemitério se concentram por ali. Na parede, um aviso pede ao visitante que "seja inteligente" e não leve coisas cruas e bebidas para lá. "Só pessoas educadas e civilizadas conseguem sucesso na vida", sermoneia a placa.

Atrás do cruzeiro das almas fica a "Praça dos Três Poderes" - assim chamada de brincadeira por ter representados o poder executivo (Campos Salles), o judiciário (Abreu Sodré) e o industrial (Matarazzo). Este é um mausoléu de 150 metros quadrados, com 20 metros de altura desde o subsolo.

Tudo isso, porém, demora para ser encontrado pelo visitante solitário, sem Popó. O cemitério não tem placas informativas nem oferece um mapa em folheto para quem chega. Também precisa restaurar o asfaltamento e melhorar a jardinagem. A Prefeitura promete tudo isso; promete até mesmo mudar a pintura externa do muro, hoje tomada por nuvenzinhas kitsch em fundo azul. Popó não vê a hora. Se a morte não tem consolo, ele e São Paulo têm o Consolação.

Microempresários vão pedir apoio a

Lobato, que, além de escritor, investiu em petróleo

O DONO DO SÍTIO

Foi morta pelo pai por ter engravidado do motorista da

família. O corpo

do pai está ao lado

SEM RANCOR