Título: Índios ameaçam atividades da Vale
Autor: Mariana Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2005, Economia & Negócios, p. B12

Mineradora enfrenta revolta da aldeia que vive no entorno de Carajás

Sossego. O nome da mina de cobre da Companhia Vale do Rio Doce no Sul do Pará não poderia ser menos apropriado. Em seu entorno, uma aldeia de 800 índios, os Xikrin do Cateté, está ameaçando as atividades da gigante mineradora, cujo lucro em 2004 superou os US$ 2,5 bilhões. Na semana passada, uma manifestação dos índios, que acamparam durante quatro dias no centro da vila urbana da empresa em Carajás, onde moram cerca de 5 mil funcionários, provocou uma forte reação da companhia. Em anúncios de meia página nos principais jornais do País, a empresa afirma que "manifestações radicais" destroem a competitividade da indústria brasileira e revela que os bons selvagens andam exigindo carros de luxo, avião bimotor, casas de alvenaria, dentre outros "pleitos estranhos".

Concessionária de um direito real de uso de terras da União, a Vale, privatizada em 1997, é obrigada, por uma resolução do Senado Federal de 1986 (número 331) a amparar populações indígenas que vivem nas proximidades da área concedida. Apesar de não reconhecer a resolução, sustentando que ela não tem mais validade, a Vale está destinando, este ano, R$ 19 milhões para três comunidades indígenas que vivem em seu entorno no sul do Pará e no Maranhão. Pequeno diante do lucro da empresa, o valor equivale a nada menos que 20% do orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) para este ano.

Mas, para algumas das comunidades indígenas, o valor parece pouco. A revolta dos índios na semana passada se deveu justamente ao fato de a Vale ter cortado os repasses do próximo ano para a associação Xikrin Bep Nói, em R$ 900 mil, para R$ 4,97 milhões. "A gente quer saber porque a Vale reduziu os recursos e não falou nada. A comunidade está aumentando e o dinheiro tem que aumentar, não baixar", afirmou o cacique Bep Karoti Xikrin, principal liderança da comunidade.

O cacique acredita que a área de Carajás foi terra indígena no passado e a Vale tem obrigação de ressarci-los. "O madeireiro enganou a gente no passado e foi embora. Por isso, estamos cobrando da Vale agora. Depois que acabar o minério, eles vão embora e deixam só o buraco", justifica ele.

De 1999 para cá, o dinheiro da Vale repassado para os índios não parou de crescer. Era apenas R$ 1,5 milhão há seis anos. Em 2002, passou para R$ 10,6 milhões. Mas, em vez de ajudar a melhorar a qualidade de vida dessas comunidades, parece estar provocando mais danos do que benefícios.

"A demanda por recursos está virando uma bola de neve sem controle. Está havendo uma desorganização social muito grande nas aldeias e a gente começa a se perguntar se esse dinheiro, dessa forma, é bom ou ruim", diz o diretor regional da Funai em Marabá, Eimar Araújo. "Eles, que sempre foram criados para ser auto-suficientes, agora estão ficando acomodados com o assistencialismo."

O dinheiro tampouco tem sido suficiente para resolver o conflito entre a Vale e os índios. Ao contrário. Nos últimos seis anos, a empresa foi alvo de nada menos que nove invasões ou protestos. Em toda a década anterior, foram apenas seis.

A origem do problema vem justamente de 1999. Por um consenso entre índios, Vale, ONGs e alguns setores da Funai, entendeu-se que, pelo fato de a empresa não ser mais estatal, seria mais eficaz repassar recursos diretamente para os índios, eliminando desperdícios com burocracia e acelerando a liberação das verbas. Na ocasião, associações indígenas foram criadas com a idéia de capacitar os próprios índios para geri-las.

MÁ GESTÃO

Bonito na teoria, na prática o modelo não funcionou. Em algumas aldeias, os índios não falam sequer português. E ninguém os ajudou a contratar equipes para montar projetos nas áreas de saúde, educação, geração de renda e gestão de recursos.

Algumas associações acabaram nas mãos de gestores desonestos e contraíram enormes dívidas. É o caso da Bep Nói, que hoje deve R$ 600 mil na praça de Marabá. Isso sem falar nas picapes, no EcoSport e em carros de luxo com os quais algumas lideranças desfilam por Marabá e cidades vizinhas e que pouco contribuem para o bem-estar da maior parte da população das aldeias.

Apesar de mais "aculturada", com muitos índios falando português e alguns até com nível superior, a etnia dos Gaviões, que também está no entorno da Vale, sofre dos mesmos problemas de falta de projetos e má aplicação de recursos.

A Vale, que até ser privatizada tinha profissionais contratados para lidar com a questão indígena e fazia um acompanhamento do uso dos recursos, hoje delegou a função para a Funai que, por sua vez, não tem estrutura suficiente para esse trabalho.

"A aplicação dos recursos não é problema nosso, mas dos órgãos competentes", afirma o diretor de ferrosos do Sistema Norte da Vale, José Carlos Gomes Soares. "Nosso negócio é minério, não entendemos de índio."

Na opinião da antropóloga Isabelle Giannini, estudiosa dos Xikrin, o problema não está no volume de recursos, mas no fato de que as partes envolvidas "abriram mão" da preocupação com a qualidade. "Há um péssimo gerenciamento da parte de todos os envolvidos, principalmente da Vale, uma vez que é ela quem está dando o dinheiro."

Junto com um profissional da área de saúde, a antropóloga concluiu um relatório de campo sobre a situação nas aldeias. Nele, recomenda que a Vale contrate consultores e especialistas em diferentes áreas para construir um programa voltado à utilização dos recursos em conjunto com os índios e com a Funai.