Título: 'Brasil deve ser fator de estabilidade'
Autor: Jamil Chade
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2005, Internacional, p. A24

Ex-presidente português diz que o País é chave para prevenir o surgimento de crises que possam gerar refugiados no continente

A América do Sul vive uma situação política frágil, que preocupa a ONU, e o Brasil precisa adotar uma posição mais ativa na região para ajudar na estabilização do continente. A declaração é do alto comissário das Nações Unidas para refugiados, António Guterres, que desembarca no Brasil hoje para sua primeira visita à região desde que assumiu o comando de uma das agências mais importantes da ONU, há poucos meses. Em entrevista concedida ao Estado em Genebra, o ex-primeiro ministro de Portugal alerta para o surgimento de líderes populistas na América Latina e para a necessidade de que a democracia seja respeitada. Mesmo com a crise causada pelo terremoto no Paquistão, Guterres optou por não cancelar sua viagem ao Brasil. Quando se reunir com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pedirá mais envolvimento do Brasil na tentativa de evitar crises na região, o que seria o melhor remédio contra novos fluxos de refugiados. Na Bolívia, as tensões sociais aumentam com a aproximação das eleições de dezembro. O sr. teme repercussões mais graves?

Em muitos países da América Latina o desenvolvimento democrático não foi inclusivo. A verdade é que largas camadas da população, por razões sociais ou étnicas, não participaram efetivamente da vida democrática. E isso levou a muitas situações em que os próprios sistemas democráticos entraram em ruptura ou grave debilidade. O problema é que nem sempre a integração desses excluídos na vida política é promovida por líderes que tenham uma visão clara sobre os valores da democracia. E isso também colabora para o surgimento do populismo. É importante que as democracias se desenvolvam de uma forma inclusiva em relação a todas as comunidades que compõem o país. Isso evitaria abrir espaço para intervenções populistas e com tendências menos democráticas. Na Bolívia, a democracia funcionou até com certa estabilidade por algumas décadas. Mas temos de reconhecer que uma grande parte da população estava fora do sistema. É isso que origina as tensões atuais e espero que não gere novos refugiados.

Essa também seria a explicação para o que aconteceu na Venezuela nos últimos anos?

Essa situação (de fragilidade política) está presente em quase todos os países andinos, em maior ou menor grau. Há ainda na América do Sul um conjunto de situações políticas muito frágeis. São situações que não estão inteiramente consolidadas e em que um apoio externo, como na promoção da democracia, dos direitos humanos e da estabilidade política, social e econômica, é extremamente útil. Isso faz com que tenhamos grandes preocupações em relação ao futuro. O continente tem todas as condições de resolver esses problemas e o Brasil é um dos elementos fundamentais para que essas soluções existam.

Que papel o sr. espera do Brasil ?

O Brasil sempre foi um país de asilo. Muitos portugueses, durante a ditadura, encontraram refúgio no Brasil. Mas a preocupação principal quando falamos de refugiados na América do Sul é evitar que eles existam. Temos de prevenir e isso passa pela capacidade que um país pode ter no sentido de evitar o surgimento de conflitos. O Brasil precisa ser um fator de estabilidade. Nessa lógica, consideramos o Brasil como um país-chave para prevenir o surgimento de situações que possam gerar novos refugiados. Essa é a motivação maior dessa visita. De certa forma, o Brasil já atua nesse sentido ao enviar tropas ao Haiti e tentar garantir uma situação melhor em um dos países que gera fluxos de refugiados.

Como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) avalia a posição do Brasil sobre abertura para os refugiados?

Sempre fui um defensor do processo de integração na América do Sul e o Brasil tem um papel crucial nisso. É evidente que, se essa integração funcionar perfeitamente, não haverá refugiados da América do Sul. Mas o continente americano é ainda uma região com problemas de refugiados. O exemplo mais gritante é o da Colômbia - e nem sequer temos um número determinado de refugiados desse conflito. Fala-se em 250 mil refugiados colombianos apenas no Equador, além de 2 milhões de pessoas deslocadas internamente na Colômbia. O Brasil tem um papel importante no estabelecimento de mecanismos de solidariedade e de partilha das responsabilidades que o leva a ser hoje um país de acolhimento de refugiados. São pessoas que deixaram a Colômbia, foram primeiramente para o Equador ou outros países vizinhos e agora são levados para uma instalação definitiva no Brasil.

Há anos a ONU vem atuando na Colômbia e o problema dos refugiados, porém, parece não ter sido solucionado. Qual é o plano para lidar com esse problema?

Não haverá uma solução para os refugiado colombianos enquanto os problemas políticos do país não forem resolvidos. Estamos ainda longe de uma solução para esse problema e a Colômbia é um dos casos mais graves no mundo hoje.

Qual é, atualmente, o principal desafio em relação ao problema do populismo?

Estamos em uma batalha decisiva contra o populismo. Na Europa, principalmente, esse fenômeno tem levado a uma confusão na opinião pública entre terrorismo, problemas de segurança, imigração e refugiados. Muitas vezes vemos que certos discursos políticos querem instalar essa confusão nas mentes das pessoas. É necessário travar um combate decisivo a favor da tolerância. Essa é a condição indispensável para a coesão social e para a paz.

Mas essa guerra na Europa não parece estar dando resultados.

Essa é uma guerra muito complexa e passa pelo respeito do que é diferente e pela capacidade de combater o medo em relação àqueles que pertencem a outra etnia ou religião. Quando existem problemas de pobreza, desemprego e de coesão social, é fácil, em vez de combater estruturalmente as causas, encontrar bodes expiratórios. E o bode expiratório mais simples é o estrangeiro, aquele que tem outra cor de pele ou religião. O racismo, a xenofobia, o fundamentalismo religioso e os nacionalismos violentos são formas de uma irracionalidade de comportamento político que substituem as tentativas sérias de resolução dos problemas. Infelizmente, assistimos a uma crise de valores que muitos de nós acreditávamos que já estavam consolidados. No fundo, a intolerância e essa crise têm levado a rupturas sociais e confrontos étnicos no interior da Europa que eu pensava que não seriam mais possíveis.

BOLÍVIA: "Temos de reconhecer que grande parte da população estava

fora do sistema democrático"

DESAFIO: "É necessário travar um

combate decisivo pela tolerância,

indispensável para a coesão social"

EUROPA: "Se há pobreza e desemprego, é fácil culpar o estrangeiro, em vez de combater as causas dos problemas"