Título: O grande apostador bolivariano
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2005, Internacional, p. A22

Nos próximos anos, se Chávez não reduzir a distância entre ricos e pobres a fúria que ele encorajou se voltará contra ele

Alma Guillermoprieto Tradução de Alexandre Moschella O livro mais recente de Alma Guillermoprieto é 'Dancing with Cuba' (Dançando com Cuba) The New York Review of Books O maior número de barrios (como são chamadas na Venezuela as vizinhanças pobres) se encontra na parte leste de Caracas, na área de Petare, onde vivem 600 mil dos 4 milhões de habitantes da cidade. Essa comunidade é pobre, embora na Venezuela, país com renda per capita de US$ 4.400, esteja longe de ser a mais pobre. Crime e drogas são problemas graves aqui. E Petare também tem chavistas - seguidores de Hugo Chávez. Possivelmente mais chavistas por metro quadrado, e mais organizados, do que qualquer outra região do país.

É em Petare que os ambiciosos programas de bem-estar social de Chávez são aplicados da forma mais ambiciosa, porque ele transformou os pobres em seu partido de fato. Como resultado, sua permanência ou não na presidência pode ser determinada pelos moradores desse barrio, que disputa com três cidades o posto de quarta maior aglomeração urbana da Venezuela.

Em uma manhã no final de julho, fui a Petare e passei pelos escritórios locais de várias organizações de bem-estar social criadas por Chávez ao longo de seus quase sete anos no poder. Minha guia foi Maria Milagros Reyes, uma mulher firme e entusiasmada que mora no topo de uma das mais altas colinas do barrio. Reyes é a diretora de ideologia do Comando Maisanta, uma organização criada no ano passado com o objetivo de promover o voto num referendo sobre a permanência de Hugo Chávez no poder.

Reyes tem uma posição de certo prestígio, e temi que em sua presença as pessoas talvez não quisessem expressar as dúvidas e reservas em relação a Chávez que ouvi entre os cidadãos e até dos líderes chavistas em outros barrios. Mas em Petare, naquela manhã, ninguém parecia ter nenhuma dúvida.

Era impossível não reconhecer o vigoroso entusiasmo dos pouco mais de 20 idosos de camiseta branca que interromperam sua ginástica num estacionamento para explicar como, ainda naquela semana, embarcariam num ônibus nas proximidades para sua excursão semanal - hoje para um parque, algum outro dia para a praia. "Eles até mesmo tiram nossa pressão sanguínea antes de começarmos os exercícios", explicou uma mulher .

A fragmentada oposição a Chávez condena com unanimidade os vários programas de barrio como assistencialismo populista. E num aspecto os programas podem ser vistos como algo ainda pior que isso: uma tentativa gananciosa de Chávez de substituir os Ministérios de Saúde, Habitação e Educação que são o legado do regime anterior por seus próprios programas, para seu exclusivo benefício político. Mas em Petare, as várias misiones - o nome para os programas nacionais com financiamentos mais generosos - podem fazer essas críticas altivas parecerem insensíveis ou deslocadas.

Muitos adversários de Chávez riem da adoração cega de um homem que ama fazer uma serenata para a audiência em qualquer oportunidade pública, anda de uniforme militar e ostenta relógios Cartier no pulso, um para cada ocasião.

A oposição vive num estado de raiva permanente também com a corrupção do regime, seu uso autoritário dos recursos públicos e o assalto decidido de Chávez às instituições que tornam possível a democracia representativa (ele prefere sua própria marca de democracia participativa, que dá pouco espaço para partidos de oposição e direitos civis). Mas nos barrios, a única questão relevante é: "O que eles (os membros da oposição) fizeram por nós?"

Para sua sorte, os membros da oposição atual a Chávez não precisam responder a essas perguntas, porque seus líderes surgiram apenas nos últimos cinco anos, e saíram em grande parte das fileiras de empresários e ex-empresários que não tinham virtualmente nenhum envolvimento político anterior.

Mas como eles são quase todos membros das classes altas, são profundamente rejeitados pelos chavistas, na imensa maioria pobres. Os políticos não-chavistas ou perderam o respeito do eleitorado durante o desmoronamento do velho sistema partidário, nos anos que precederam a chegada de Chávez e sua Revolução Bolivariana, ou são jovens e ineptos demais para ter credibilidade.

E muitos sujaram para sempre suas credenciais democráticas ao mostrar um júbilo irrestrito no auge de um golpe militar que removeu Chávez do poder por 48 horas em abril de 2002. Eles dificilmente contam como uma alternativa: é amplamente reconhecido que os 59% dos votos que representam a maior vitória de Chávez nas urnas até agora significam que 41% do eleitorado votou contra ele, mas não realmente em alguém.

Tendo começado como uma força capaz de mobilizar meio milhão de pessoas ou mais às vésperas do golpe em Caracas, e de reunir pelo menos 3 milhões de assinaturas no ano seguinte para uma petição para realizar um referendo sobre a continuação do governo de Chávez , a oposição está confusa.

Tomei muitas xícaras de café certa manhã com Teodoro Petkoff, que na década de 90 foi ministro do Planejamento de Rafael Caldera e em 1998 foi editor-chefe do jornal El Mundo e contratou um punhado de jovens jornalistas brilhantes para modernizar seu conteúdo e visual. Atualmente possui o tablóide Tal Cual, produzido por uma equipe minúscula e com uma circulação inferior a 25 mil exemplares.

Não há muitas reportagens nas páginas internas e os anúncios são escassos, mas as pessoas compram principalmente pelos ousados e lúcidos editoriais de Petkoff na primeira página (a manchete do número de lançamento da publicação era formada por duas palavras: "Olá, Hugo").

Por ser um pensador independente e, aos 73 anos, notavelmente vigoroso, Petkoff é muito entrevistado e aparece com freqüência na televisão. Ele está confuso por se ver emergir como o centrista do momento para o setor da oposição que não apoiou o golpe contra Chávez há três anos nem se identifica com os líderes atuais.

As pessoas lhe perguntam o tempo todo o que ele planeja fazer com seu novo status, porque a opção óbvia seria concorrer contra Chávez, que deve tentar a reeleição no próximo ano.

Por enquanto, ele se esquiva. "Chávez tem dois pedais", disse ele. "Um é a democracia formal e o outro é o autoritarismo, e ele pisa ora em um, ora no outro, conforme as circunstâncias. Em cada eleição, os resultados ficam perto de um empate (pró e contra ele), e ele sabe como ler e pesar esses resultados corretamente."

À margem de todo o resto, o setor que está contra ele é o mais dinâmico (da economia). E se ele quisesse esmagar esse setor teria de fazê-lo com sangue e fogo. Mas se Chávez perceber que os 40% que se opõem a ele estão enfraquecendo, pisará novamente no pedal autoritário."

Em Caracas, hoje em dia, é desanimador ouvir intelectuais que apóiam Chávez defendê-lo com argumentos que já foram usados com muita freqüência no passado: o homem pode agir como um palhaço, mas é autêntico; ele usa ternos de grife porque os pobres gostam de vê-lo bem vestido; Chávez está certo em reprimir seus opositores porque eles são reacionários, ou corruptos, ou detestáveis, ou ineptos, ou insignificantes; os piores excessos são cometidos sem o conhecimento do presidente e, de qualquer modo, seus antecessores eram igualmente ruins, mas Chávez pelo menos está fazendo alguma coisa pelos pobres.

E, claro, há sempre a questão del imperialismo, uma ameaça universalmente percebida e muito real: nada colaborou tanto com o agradecido Chávez quanto o recente apelo de Pat Robertson para que os EUA assassinassem o presidente eleito da Venezuela, ao lado da resposta hipócrita do Departamento de Estado. O abismo social é real e enorme, dada a quantidade de dinheiro do petróleo que já circulou na Venezuela, mas Chávez fez uma carreira política exacerbando a revolta que esse abismo provoca.

Ele também trouxe, com as misiones, um senso de alegre esperança para grande parte dos pobres da Venezuela que não viam um futuro para si mesmos antes de seu surgimento.

Ele é um apostador de alto risco. Se, nos próximos anos, as misiones não conseguirem diminuir a enorme distância entre os ricos e os que vivem nos barrios, a fúria que Chávez encorajou se voltará contra ele. Entre seus oponentes está o fanático ocasional que pede sua derrubada pelos EUA ou, à moda de Pat Robertson, seu assassinato.

Mas o sitiado setor moderado, na triste percepção de que a remoção forçada de Chávez apenas garantiria seu domínio espiritual sobre a Venezuela por décadas, reza para que o presidente tenha a chance de fracassar, e assim saia do cargo pacificamente pelo voto. Supõe-se que, além dessa forma retorcida de esperança, eles estejam rezando por um líder inspirado, inspirador, que venha de seu próprio meio.