Título: O STF e a mulher de César
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2005, Notas e Informações, p. A3

Se há uma instituição pública que deveria observar à risca o velho mandamento imposto à mulher de César - o de não só ser honesta, mas parecer honesta -, esta é a mais alta corte de Justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF). E é certo que, em se tratando de exercício de poder jurisdicional, o qualificativo da honestidade se confunde inteiramente com o da isenção. Partes em conflito só sentirão confiança na Justiça se perceberem que em suas instâncias, principalmente na mais elevada delas, prevalece a neutralidade, a eqüidistância na apreciação das razões e dos interesses em litígio, impedindo, assim, quaisquer favorecimentos, motivados por algum tipo de ligação prévia entre quem julga e quem é julgado.

Tão importante quanto a harmonia entre os Poderes de Estado é a imagem que deles faça a sociedade - e, no caso do Judiciário, a imparcialidade sobreleva como o fulcro essencial de sua credibilidade pública. O favorecimento àquilo que João Mendes Junior costumava chamar de 'espiolhar nugas', ou seja, 'catar quinquilharias' (na oportuna tradução de Walter Mayerovitch), como o é permitir o abuso de filigranas processuais para a protelação de decisões em benefício de uma das partes, faz parte do rol de suspeições que podem minar a imagem de isenção dos que exercem a nobre função judicante. Por outro lado, as chamadas decisões monocráticas, pelas quais ministros de tribunais superiores assumem sozinhos deliberações complexas, concedendo ou não medidas liminares sponte sua, também podem contribuir, em casos reiterados, para desconfianças públicas em torno da imparcialidade dos julgamentos. Certamente o ministro Sepúlveda Pertence teve sensibilidade em evitar a decisão monocrática para assunto de complexo interesse público, quando, em lugar de decidir sozinho sobre pedido de liminar dos advogados do deputado José Dirceu (PT-SP) - que pretendiam anular o processo que corre contra ele no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, sob a alegação de que os fatos apontados como falta de decoro referiam-se ao tempo em que ele era ministro e não exercia mandato parlamentar -, optou por levar o julgamento desse pedido ao plenário do Tribunal, onde o deputado sofreu derrota por 7 votos a 3. Já quanto a ligações entre julgador e julgado, que pudessem eventualmente comprometer a imagem de isenção da Corte, o também ministro do STF Celso de Mello deu boa lição quando, em julgamento de matéria de interesse do senador José Sarney, se declarou impedido, pelo simples fato de ter sido nomeado para o Supremo por Sarney, ao tempo em que este era presidente da República.

Ao julgar o pedido de liminar de José Dirceu com referência a outra questão, na mesma representação que lhe é movida no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, o ministro do STF Eros Grau nem agiu como Celso de Mello, declarando-se impedido, apesar de manter estreitas ligações de amizade com o deputado José Dirceu e de ter sido um dos três ministros que votaram pela anulação do seu processo dias antes, nem agiu como Sepúlveda Pertence, levando a decisão ao plenário do Tribunal, para evitar uma eventualmente suspeita decisão monocrática. E, ainda por cima, deu abrigo a tecnicalidades formais, por parte dos defensores do deputado, típicas do referido 'espiolhar nugas' - talvez eufemismo requintado, usado pelo jurista, para definir o que pode ser entendido, também, como pura chicana. Esta é uma parte que talvez devesse ser objeto de reflexão de lege ferenda, no bojo da reforma processual, do sistema recursal, do funcionamento dos tribunais superiores e de tudo o mais que interfere no andamento da máquina do Judiciário.

Assim como há grandes empresas com administração bem-sucedida, pelo fato de sua diretoria manter uma reunião colegiada permanente, para resolver os problemas que lhe surgem no trabalho cotidiano, não seria possível, mesmo em casos de emergência - a exigirem decisões liminares -, a participação obrigatória de alguns julgadores da corte, evitando-se sempre as discutíveis decisões monocráticas? De qualquer forma, com este exemplo ou outros, o certo é que o momento político/judiciário que atravessamos nos leva a concluir que algo precisa ser feito para preservar a imagem de isenção da mais alta corte de Justiça do Brasil.