Título: Anestesia moral
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Passei as últimas cinco semanas nos Estados Unidos cumprindo minhas obrigações como professor da Universidade de Brown, como tenho feito nos últimos anos durante o outono do Hemisfério Norte. Lá, como aqui, a opinião pública foi colhida por uma série de escândalos, coisa que às vezes acontece nas democracias contemporâneas. Com algumas diferenças: os 'grandes' escândalos por lá, que seriam considerados por aqui quase 'de rotina', são investigados até o fim e as leis são cumpridas. O resultado é que, com freqüência, se descobre que desvios aparentemente 'pequenos' não eram tão pequenos assim, ou estavam ligados a uma trama de desvios maiores. Para que um acusado saia depressa do governo e trate de se defender como cidadão comum basta a acusação formal por parte de um procurador (acusação séria e procedimento não espetaculoso do Ministério Público, naturalmente). O público se preocupa, fazem-se pesquisas de opinião para avaliar os efeitos do que se descobriu e dos impactos sobre o prestígio do presidente.

No Brasil, na forma, acontece a mesma coisa. Faz cinco meses que cuidamos de escândalos que envolvem séria alegação de 'compra de votos', do uso de influência para a obtenção de contratos beneficiando pessoas próximas ao presidente, de recursos vindos do exterior para a campanha presidencial e dos demais candidatos, e assim por diante. Não me refiro apenas à última reportagem da revista Veja, cujos desdobramentos ainda estamos por ver, mas às reiteradas declarações de participantes da campanha de 2002 de que receberam no exterior pagamentos de seus contratos de trabalho, provindos em parte de contas também do exterior, como no caso de Duda Mendonça.

Mas, se a forma é a mesma, a reação dos atores políticos é diferente. Há uma busca de 'ganhar tempo' na suposição de que o esquecimento resolverá tudo. E, para ganhar tempo, nada como aplicar a lei, tintim por tintim. São tantos os recursos protelatórios cabíveis em nosso formalismo jurídico que se podem postergar decisões até que se esfume o sentimento público em prol da reparação dos danos causados. Recentemente o próprio Supremo Tribunal Federal passou a ser instrumento (legal, é claro) do jogo político de não deixar que o espírito da lei se cumpra.

Quem dá o tom é o próprio governo. Não foi ele que encorajou os deputados acusados a renunciarem para que não fossem excluídos da vida pública por dez anos, dando-lhes chance de a ela voltarem nas próximas eleições? Ou não é o próprio presidente quem procura minimizar a gravidade das acusações endossando a tese, até mesmo no exterior, de que 'sempre foi assim' no Brasil, como se isso absolvesse erros atuais ou o desobrigasse, se sabedor de desvios, de enquadrálos na lei? Ou não são as lideranças do governo no Congresso e os dirigentes do PT que fazem o jogo da insinuação vaga e vazia, ameaçando investigar a suposta compra de votos para a emenda da reeleição? Pois que a investiguem. Tanto o PSDB quanto eu já nos declaramos favoráveis à investigação para pôr fim à chantagem da política de escândalos.

Trata-se, na verdade, de algo mais profundo. O fundamento da idéia de que a democracia implica um governo sob o império das leis, com escolha popular tanto dos que as fazem como dos que governam, não é o formalismo jurídico, nem o jogo de faz-de-conta, o 'jeitinho' brasileiro. O que caracteriza a democracia é o 'espírito' dessas leis, como diria Montesquieu. É a crença em valores fundamentais, como a liberdade, a decência, a veracidade, a transparência e, diga-se com clareza, a punibilidade dos que se desviam desses valores a ponto de comprometer sua crença.

No Brasil, a falta crescente de legitimidade das instituições as mina e as paralisa. O desamor popular pela vida pública, a desconfiança de que todos são iguais na malandragem são venenos letais para a democracia. O espetáculo da política como vingança é próprio da luta entre clãs que disputam o patrimônio do Estado como se fosse seu. Trata-se de sintoma claro de uma degradação da vida política em que se perdeu a noção de interesse público. A falta de compromissos com idéias e com palavras faz parte dessa crise. Ou alguém se esquece de que o mesmo senhor que hoje preside o PT, ontem, como ministro da Previdência, se bateu pela aprovação de uma reforma que havia combatido anteontem, quando deputado da oposição? E não foi o ex-presidente da Câmara quem disse, supostamente para justificar a mudança de posição, que naquela época estavam empenhados em 'fazer a luta política', como se esta visasse simplesmente a alcançar e manter o poder? Para não falar no presidente, que gaba como 'sua' praticamente a mesma política econômica que, até 2002, ele dizia pejorativamente ser neoliberal, com a qual o País deveria romper, bravata que caro nos custou no ano das eleições. É urgente combater essa falta de convicções, que é cínica e vulgariza a política, da mesma forma que é preciso terminar com a sustentação burocrática dos meandros processuais, que levam à impunidade. Formas democráticas sem os valores que lhes dão sustentação terminam por produzir uma lassidão moral que desmoraliza as instituições. É de lamentar mais ainda a tentativa do governo, e de seu partido, de não ir mais fundo nas denúncias, investigando-as e, se for o caso, demonstrar que é inocente. Em vez disso, tentam jogar a culpa de tudo na oposição (que não foi autora de uma sequer das denúncias que deram origem à crise) e na imprensa (que apenas cumpre seu dever). O governo bebe com tanta sede no pote da vingança que corre o risco de açular uma divisão profunda do País em dois blocos. Já assistimos a processo semelhante no passado, aqui e em outros países. A vítima maior é sempre a democracia.

Cabe ao presidente a responsabilidade maior para evitar uma nova marcha da insensatez.?