Título: A República surrada
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Se o sangue pernambucano de Luiz Inácio esquentasse ante a ameaça de ser surrado por congressistas, o País poderia assistir ao maior espetáculo da História contemporânea. Veríamos um inusitado combate entre a exponencial figura do presidente da República e um alto prócer do Parlamento, o líder do PSDB, Arthur Virgílio, que fez questão de soletrar a palavra surra, garantindo que bateria na cara de Lula caso ele estivesse por trás das ameaças que sua família está sofrendo. Caso resistisse ao primeiro round, a senadora Heloisa Helena daria continuidade ao massacre, pois também prometeu bater no presidente. E, no eco dos dois senadores, o deputado Antonio Carlos Magalhães Neto também quer entrar na pancadaria, dando como justificativa o grampeamento de seu telefone pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Não é todo dia que se ouve alguém, de público, ameaçar açoitar o mandatário de uma nação.

Daí a pergunta: por que um senador de alto coturno, chamado de pitbull dos tucanos, uma senadora das Alagoas, Estado que já foi considerado 'terra da pistolagem', e um deputado baixinho, apelidado de pequeno samurai, por conta do DNA baiano dos Magalhães, querem nocautear o presidente? E por que tal xingamento não causa comoção, a não ser risos incontidos da turba? Duas respostas se apresentam: a primeira está no reconhecimento de que o Brasil é o país da fanfarronada. Aqui, a bravata é sinal de coragem, bastando observar os valentes discursos travados nos palcos políticos, onde aos ataques rancorosos se seguem tapinhas nas costas entre 'guerreiros adversários', a demonstrar que no Congresso se assiste a uma Batalha de Itararé por dia. E que dizer, então, das CPIs, onde mentira e versão, verso e reverso, o sim e o não mudam de lado a cada instante, indicando que a investigação sobre corrupção é um jogo de esconde-esconde? A segunda resposta está no axioma: quem é dono da flauta dá o tom.

Ora, sai dos lábios do dono da flauta, o presidente da República, o tom menor da expressão política. Lula faz da linguagem escabrosa arma de conquista. Abusa de imagens populares para gerar empatia nas classes C, D e E. Um presidente da República, porém, tem a responsabilidade de conferir nobreza ao cargo, não permitindo se domesticar pela mediocridade.

O repertório de parvoíces presidenciais já tem vida garantida no vocabulário nacional. Talvez por isso, qualificações como 'idiota ou corrupto', atribuídas a ele pelo mesmo senador Arthur Virgílio, parecem não incomodá-lo. Seriam extensões da 'urucubaca de madonas choronas', aforismo com que distingue aqueles que torcem contra seu governo? Por dever de justiça, lembre-se que Fernando Henrique também se valia de estocadas contra adversários, como os termos 'neobobos' e 'fracassomaníacos' para designar quem ousava apontar o irrealismo de sua política cambial sobrevalorizada. Na galeria dos nossos presidentes eleitos pelo voto direto, a exceção de perfis silenciosos é a do marechal Eurico Dutra, 'o catedrático do silêncio', aquele que trocava o C e o S pelo X.

Não falava besteira porque, dizia, apreciava 'as cenas mudas'. Com floreios lingüísticos de nível duvidoso, a contribuição dos nossos homens públicos para a elevação cultural e ética da sociedade brasileira tem sido medíocre. O debate político apequena-se. Torna-se disputa de egos. Os temas nobres que oxigenam as veias da política - como os valores republicanos, o ideal democrático, as doutrinas, os direitos da cidadania - se perdem no meio da fuzarca da retaliação. Não apagamos de todo a imagem de território barbarizado por tiroteios entre bandidos e mocinhos, cada um, claro, querendo aparecer como o lado do bem. Se alguém insere um conceito valorativo na pauta congressual, como o respeito à lei, o discurso cai no vazio. As CPIs são espaços de verbos em contrário. A igualdade perante a lei é outra ficção. A res publica continua sendo fatiada entre fulanos e beltranos. A briga por nomeações para cargos públicos não diminuiu. A rede de proteção social se estreita. Os programas têm caráter assistencialista, apenas mantendo o status quo. Nas três esferas da administração, o déficit de ação pública se agiganta.

O que dizer da incúria governamental na política de prevenção contra a febre aftosa? Agora é o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, quem reconhece: 'Houve relaxamento.' Os focos da doença se expandem e ninguém, ninguém mesmo, recebe um puxão de orelhas. Para completar a escalada de inércia, o próprio presidente Lula admite que os programas prioritários não avançam e ordena: 'Gastem mais.' A administração federal vai, assim, esgarçando os furos da gigantesca peneira. Está sendo difícil sustentar a base de equilíbrio da República. Que harmonia federativa se pode exigir quando a União arrecada cerca de 61% do bolo tributário, enquanto os Estados ficam com 24% e os municípios, com 15%? A identidade republicana, que nunca foi tão forte, se esboroa ante os entreveros do cotidiano político. A independência dos Poderes é mais uma ficção que a crise política escancara. Veja-se essa revolta do Conselho de Ética da Câmara contra o ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, que tem acolhido os recursos impetrados pelo deputado José Dirceu. Procura-se distinguir na decisão do magistrado parcialidade pelo fato de ter sido guindado ao cargo pelo presidente Lula, seu amigo. A versão do jogo de amizades suplanta a interpretação de decisão rigorosamente estribada na lei. E assim o ato de um membro do Supremo acaba maculando a imagem sagrada da mais alta Corte judiciária. Os estragos abrem imenso vácuo, cuja conseqüência é o distanciamento da sociedade da esfera político-governativa. Não se trata de afastamento alienado. Ao contrário, ela avança no sentido da autonomia, enquanto o Estado recua em seus deveres. Também, pudera! Quem leva surra todos os dias é a República.?