Título: Rugido das ruas é um aviso para toda a Europa
Autor: Reali Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/11/2005, Internacional, p. A32

Os poderes públicos levaram cinco dias para avaliar o drama. Ficaram imobilizados. Não viram ninguém chegar. A surpresa foi total. No entanto, essa surpresa foi surpreendente. Na verdade, se o desencadear dos conflitos foi por causa de um incidente comum (a morte de dois adolescentes), os efeitos foram devastadores na medida em que os bairros de subúrbios franceses (em Paris e Lyon, principalmente) estão doentes, muito doentes, e só esperavam uma oportunidade para explodir. No primeiro dia, a agitação afetou apenas um bairro, Clichy-sous-bois, em resposta à morte por eletrocução em uma central elétrica de dois moleques que haviam se refugiado ali por razões ainda mal explicadas. Nas noites seguintes, os bairros vizinhos foram contagiados pela agitação. A polícia reagiu duramente. E, depois de 24 horas de confrontos a tática evoluiu: comandos colocaram fogo nos carros, saquearam uma loja e desapareceram.

A polêmica atingiu a classe política. A esquerda denunciou os erros funestos da direita. A direita culpa o "angelismo" beato da esquerda. Essa briga é estúpida, fútil e hipócrita. Pode-se muito bem repreender o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, por ter irritado os imigrantes ao anunciar que iria "limpar a gentalha". Mas Sarkozy não é responsável pelo incêndio. Por mais discutíveis que sejam suas ações, ele foi o único no governo que desde o primeiro dia tentou (sem conseguir, mas com coragem) controlar o desastre. Hoje, a sabedoria dos políticos seria dizer: "Esquerda e direita, nós estamos no mesmo barco. Nós o conduzimos como imbecis. Vamos aprender com nossos fracassos se queremos evitar que o barco vire."

Os responsáveis devem administrar a luta em dois registros: por um lado, restabelecer a ordem e evitar novas provocações e mal-entendidos.

Mas o mais importante é examinar a questão em perspectiva. O que aconteceu em Clichy estava para acontecer não há oito dias, não há um mês, mas há dezenas de anos. Todos os partidos foram acometidos da mesma cegueira: há 30 anos, eles deixaram entrar em massa os imigrantes, legal e ilegalmente. E não fizeram nada para permitir que essas imensas populações se integrassem, achassem trabalho ou estudassem.

As periferias estão abandonadas. O desemprego chega a 40%. Os jovens, sem escolas, sem futuro, sem conhecimento, pobres, são deixados à própria sorte. Aquilo que era visto como um paraíso virou um inferno para os imigrantes.

Muitos só sobrevivem se virarem traficantes ou se dedicarem a outras atividades criminosas. Desocupados, que vagueiam pelas cidades sem esperança, miseráveis, sem distração, se sentem (com ou sem razão) excluídos e desprezados pelos europeus. Esses desenraizados acumularam preguiça, amargura, agressividade e violência.

Desde então, um ciclo infernal se desencadeou: como esses imigrantes são insolentes, reivindicativos, suscetíveis, ameaçadores e perigosos, os franceses os odeiam e desprezam. Duas formas de racismo prosperam, uma graças a outra: os negros e os magrebinos não suportam ser rejeitados pelos brancos, têm comportamentos insuportáveis. O que leva, por parte dos não imigrantes, a uma nova escalada de desconfiança ou o ódio contra os imigrantes.

É o modelo francês de imigração como um todo que deve ser repensado. Claro, de imediato, a urgência é restabelecer a ordem. Além disso, a política que vem sendo aplicada há 30 anos deve ser demolida para ser substituída por outra. E isso não acontecerá de um dia para outro. Isso exigirá imaginação e generosidade, uma leveza de espírito da qual são desprovidos tanto os responsáveis pela direita quanto pela esquerda.

Finalmente, para fazer isso serão necessários investimentos financeiros gigantescos.

A França não pode continuar a ignorar esses enormes bairros pobres à deriva, pois atritos muito piores podem se seguir. Vários desses imigrantes, principalmente os magrebinos e também uma parte dos negros, são muçulmanos. Ora, o Islã, na Ásia e na África, viu o terrorismo se expandir. Por enquanto, os imãs franceses, ao menos os que se manifestam, pedem calma aos jovens exaltados.

Mas os extremistas islâmicos estão prestes a se lançar sobre as chagas do mundo para alimentar seu terrível combate. A Al-Qaeda procura combatentes na Indonésia ou Afeganistão, no Egito ou no Magreb. Eles são virtuosos quando se trata de envenenar os fracos, os destituídos, as vítimas. Eles são hábeis para infectar populações em perigo. Os pregadores da morte certamente estão presentes na França como em todos os lugares. Há na França os salafistas (grupo de origem argelina), uma variedade especialmente venenosa de islamismo. Os milhões de imigrantes dos bairros de periferia formam uma prole apetitosa para os profetas do sangue. Se fosse feita uma ligação entre o terrorismo islâmico e uma parte dos bairros, então, o perigo seria máximo.

A França deveria, portanto, fazer uma autocrítica e admitir seus erros. Mas a questão está além da França. Em todos os países da Europa, seja quais forem os modelos adotados (prevenção ou repressão, etc...), a presença disseminada dos imigrantes é um barril de pólvora.

A violência nos bairros de periferia parisienses fascinam e aterrorizam toda a Europa. As razões são numerosas: por um lado, fica-se surpreso que essa França, pequeno paraíso de calma e ordem, país dos direitos humanos e tão orgulhoso de seu modelo de integração, se revele repentinamente fraca e vulnerável. Mas além dessa curiosidade ligeiramente desprezível, há também uma verdadeira angústia.

Todos os países europeus sabem que a provação dos bairros de periferia parisienses pode se repetir, ao primeiro incidente, em Berlim, Londres, Glasgow ou Nápoles. É um estridente sinal de alarme destinado a toda a Europa que os subúrbios parisienses acabam de mandar.