Título: Não é fácil ser meu anfitrião, diz Bush a Kirchner
Autor: PAULO SOTERO
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/11/2005, Nacional, p. A5

Presidente americano admite a sua impopularidade na América Latina, mas aproveita o tempo para discutir tratados comerciais

Recebido por milhares de manifestantes como "fascista" e "assassino", o presidente George W. Bush fez três coisas ontem que não estavam nos planos de sua viagem a Mar del Plata para participar da 4.ª Cúpula das Américas. Num dia em que uma pesquisa de opinião mostrou, pela primeira vez, que a maioria dos americanos duvida de sua integridade, ele fez uma admissão implícita de sua impopularidade no continente, ao agradecer a hospitalidade do governo argentino. "Nem sempre é fácil hospedar todos esses países", disse ele, depois de um encontro com o presidente Nestor Kirchner, no hotel Hermitage, referindo-se ao pesadelo logístico de receber 33 chefes de governo e garantir-lhes a segurança. "Particularmente, não é fácil, talvez, ser meu anfitrião", completou. Contrariando o roteiro que havia preparado, a Casa Branca também acabou tendo que reagir muito mais do que gostaria às declarações do presidente Hugo Chávez, que roubou a cena antes da instalação formal da Cúpula, com um discurso de mais de duas horas a cerca de 40 mil manifestantes reunidos numa anticúpula - que as esquerdas denominaram Cúpula dos Povos -, no estádio de futebol da cidade, no qual afirmou que a Área de Livre Comércio das Américas está morta e proclamou-se "o coveiro" do acordo.

Perguntando que tipo de resposta ele daria a Chávez sobre as afirmações hostis que ele fez sobre seu governo e sobre os Estados Unidos - Bush vai encontrá-lo em três reuniões e em um jantar durante a Cúpula - o presidente americano afirmou que "será polido, é claro, pois é isso o que o povo americano espera que seu presidente faça". Em seguida, renovou os ataques costumeiros da Casa Branca às inclinações antidemocráticas do presidente venezuelano.

Mas Bush também não ficou parado enquanto Chávez o atacava em um estádio de futebol superlotado. Depois do encontro com Kirchner, ele se reuniu com os presidentes do Equador, do Peru e da Colômbia, para discutir "de boa fé", como ressaltou, um tratado de comércio bilateral. Antes dessas conversas, os três reuniram-se em separado e decidiram instruir seus respectivos negociadores desses tratados a empenhar-se para superar as diferenças ainda existentes. Os presidentes colombiano, Álvaro Uribe, e peruano, Alejandro Toledo, disseram ter pressa em assinar esses tratados. "São jovens democracias", disse deles Bush, "que lutam contra o narcotráfico".

O auxiliar direto do presidente americano no encontros, o secretário de Estado adjunto para a América, Thomas Shannon, também não se livrou de uma bateria de perguntas sobre Chávez, feitas pelos cerca de noventa jornalistas americanos que cobrem a visita da comitiva de seu presidente.

"Do nosso ponto de vista, eu não descreveria o que o presidente Chávez faz como retórica", disse Shannon. "Ele obviamente acredita e está comprometido com o que diz", continuou o diplomata. "O notável é que o que ele diz oferece uma visão da Venezuela, da região e das Américas que é distinta da visão que foi expressa em várias cúpulas das Américas". Diante, porém, do impasse que persistia até a abertura da cúpula, sobre o que fazer com a Alca, e na falta de garantia de que os líderes reafirmariam a agenda da liberalização comercial - que é parte central da visão americana para a região -, Shannon tomou precaução de retirar o tema da agenda. "É importante entender que esse encontro não é sobre comércio", avisou ele. "É um encontro de líderes de estados democráticos nas Américas que se reúnem para discutir problemas comuns, valores comuns e tentar construir respostas comuns que produzam resultados para os povos".

O outro tema que Bush certamente teria preferido evitar em Mar del Plata - mas não conseguiu - foram as questões ainda não resolvidas da investigação sobre o vazamento da identidade de uma agente da CIA, que já provocou o indiciamento criminal e a demissão de I. Lewis Libby, o braço direito do vice-presidente Dick Cheney. Perguntado se demitirá seu conselheiro político Karl Rove, que continua sob investigação federal, Bush disse que o inquérito continua e que nada dirá sobre o assunto até que ele termine.