Título: Povo é só figurante no show de Kim
Autor: Monica Rosa Gugliano
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/11/2005, Internacional, p. A22

Jornalistas brasileiros constatam a ineficiência da propaganda da Coréia do Norte, onde o que é dito para impressionar, na verdade, assusta

Da janelinha do avião, a paisagem da Coréia do Norte é árida e a cidade que se aproxima está encoberta por uma bruma. Pousamos e lá está escrito: Pyongyang. E, quase ao lado, ali está ele: Kim Il-sung. Sim, o Grande Líder, o Suryong (Líder Supremo), o pai do atual líder. Ele, Kim Il-sung, que pairaria sobre nossas cabeças durante toda nossa estadia. Pisamos na capital da Coréia do Norte (eu, Ana Paula Padrão e o cinegrafista Edilson Rizzo) para fazer a primeira série de reportagens da televisão brasileira sobre o país mais fechado do mundo. Foram dez meses para conseguir o visto e dois dias de viagem. Vôo lotado, desembarque lento, fila na imigração e a primeira impressão estranha. No guichê, a moça com roupa militar cujo quepe cobre metade do rosto. Protegida por um vidro, olha meu passaporte e volta a olhar e pergunta em um inglês de difícil compreensão: "Você é jornalista brasileira? E as outras duas pessoas que chegaram junto com você?" Explico que Ana Paula e Edilson estão ali. Ela ouve e pergunta quem está nos esperando. Eu sabia que alguém estaria nos esperando. Até porque, se ninguém estivesse nos esperando, não teríamos chegado até lá.

Diante da moça com roupa militar, começo a me perguntar. Mas quem? E se eles tivessem mudado de idéia? E se nos obrigassem a voltar para casa? Foram segundos, enquanto saía do guichê e me dirigia ao vidro que separava o desembarque do saguão do aeroporto. Porém, alívio! Do outro lado, sorridente e segurando uma plaquinha escrito "Brazil", lá estava ele. Vim a saber que se chamava Kim. Seria nosso guia, junto com o outro senhor Kim. E com o motorista que usava luvas brancas para dirigir, também senhor Kim. E, finalmente, com a senhora Kim. Dela, pelo menos, conseguimos saber o nome completo, Kim Myong-suk. E mais, seu cargo: subdiretora do Departamento de Afro-América Latina, do Comitê de Relações Culturais com o Exterior. Ela conhecia bem o Brasil, passara quatro meses por aqui, tinha boas noções de português e seu nome ganhara uma versão nativa: Kim Clara.

Chamá-los de guias, porém, é quase uma licença poética. Na nossa concepção, guia é aquele que simplesmente nos mostra um caminho. Neste caso, não. Eles diriam, sempre, aonde iríamos, quando e como. Eles também impediam nossa aproximação com qualquer pessoa. Controlavam as imagens que fazíamos, cerceavam o trabalho de Rizzo, nosso repórter cinematográfico, baixando a câmera ou mesmo com a mão na lente. Ouviam as gravações de Ana Paula, ameaçavam recolher nossas fitas. Talvez a melhor palavra para defini-los seja "censores".

No entanto, ao desembarcar em Pyongyang não era possível imaginar o quanto eles podiam ser perturbadores. Assim, acompanhados por Kim Clara e pelo senhor Kim passamos pela imigração, liberamos nossas bagagens e, por rápidos instantes, tudo parecia ter alguma normalidade. Durou pouco.

Nossos passaportes foram recolhidos pelo senhor Kim. Segundo ele, para nossa segurança os documentos só seriam devolvidos quando deixássemos o país. Para nós, no entanto, o gesto só gerou insegurança. Confesso que senti medo. Assim como senti medo ao constatar que a porta de meu quarto no hotel não trancava. Voltei a sentir medo ao ser descoberta pelo senhor Kim, tentando telefonar para o Programa Mundial de Alimentos, e ouvi-lo gritar alucinadamente. Por sorte, nunca soube o que ele dizia.

Mas acabávamos de chegar a Pyongyang e, à exceção da grande contrariedade por ficarmos sem passaportes, estávamos satisfeitos com a perspectiva das reportagens que faríamos. Embarcamos no microônibus com nossos guias e fomos direto para o hotel. Combinamos que apenas deixaríamos as malas e faríamos nossos registros, queríamos aproveitar o resto da tarde que ainda tínhamos. Logo o microônibus deixa a estrada e ali está Pyongyang.

A impressão é a de que tínhamos acordado na metade do século passado. Nosso hotel, o Koryo, por exemplo, tinha quartos enormes decorados no estilo da década de 50, um banheiro pré-fabricado e um telefone de enfeite. Não ligava para lugar nenhum, nem para outros quartos ou para a recepção. Aliás, a recepção era outro mistério. Nunca chegamos nem perto. Da mesma maneira, nunca soubemos quanto custavam a diária e o serviço dos guias. O senhor Kim cuidou disso. Negociou o valor, que aumentava sempre.

Pyongyang é uma cidade limpa, arborizada. A arquitetura é típica das cidades concebidas pelo antigo regime da União Soviética: grandes monumentos, espaços imensos e vazios. Uma sensação até ampliada pela ausência quase total de carros. A população usa bondes, anda a pé ou de metrô. Os prédios são praticamente iguais. Mas, ainda que você tenha essa impressão ao andar pelas imensas avenidas, jamais diga que elas lembram cidades soviéticas. Um comentário sobre isso nos rendeu uma discussão que contribuiu para azedar de vez nossas relações com os guias. Eles ficaram irados ao ouvir a comparação: "Não há nada de soviético em nossa arquitetura."

Pyongyang tem uma arquitetura Juche. A filosofia Juche é o pilar da ideologia que orienta tudo na Coréia do Norte. Ela foi concebida e anunciada na década de 50 por Kim Il-sung, o Líder Supremo, que esteve no poder de 1948 até sua morte, em 1994. A Juche, mantida pelo filho do Grande Líder que o sucedeu, Kim Jong-il, dita as ações governamentais, do Partido dos Trabalhadores, da população, de tudo. A palavra Juche, numa tradução muito livre, significaria "dono do corpo". No caso da Coréia do Norte, é muito mais do que isso. Ela é a própria declaração de auto-suficiência da revolução que delega ao Partido dos Trabalhadores da Coréia (PTC) a difusão das diretrizes que orientam a nação.

Um de nossos passeios foi para conhecer a torre de concreto com 150 metros de altura, ornamentada ainda com um topo onde se vê uma espécie de tocha vermelha, também de concreto, com mais 20 metros, conhecida como a Torre da Idéia da Juche. O monumento pode ser visto de praticamente todos os cantos da cidade e foi inaugurado em 1982.

Os outros números que o descrevem são tão grandiosos quanto os citados acima. Mas nossos dias incluíam tantos monumentos e nossos guias recitavam tantos números - e quando estes faltavam, eram substituídos pela expressão "incontáveis" - que era difícil sentir alguma emoção ou mesmo perceber a importância ou a dimensão de tudo aquilo.

A Praça Kim Il-sung é o coração de Pyongyang, o centro político e administrativo, onde acontecem os grandes comícios, as celebrações - como a dos 60 anos do Partido dos Trabalhadores. A praça tem 75 mil metros quadrados. O Arco do Triunfo, que nossos guias lembram ser mais alto do que o parisiense, mede 60 metros. O Estádio Kim Il-sung tem capacidade para 100 mil espectadores. O Palácio das Crianças, uma espécie de gigantesca escola onde elas realizam atividades extra-curriculares, recebe 10 mil meninos e meninas por dia. O metrô, dizem também os guias, está a 100 metros de profundidade, serve como abrigo antiaéreo. E a visita à gigantesca estátua de bronze de Kim Il-sung, onde somos obrigados a depositar flores e fazer reverência.

Na mesma proporção que eles despejavam números, repetiam conceitos e elogios ao regime e suas maravilhas. E tudo foi ficando tão irreal que passou a exasperar. A Coréia do Norte tem um seriíssimo problema de energia. Esse é inclusive o argumento que eles usam para manter suas pesquisas nucleares longe da fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica ou para justificar a necessidade de construir um reator e processar urânio. Pyongyang à noite fica completamente às escuras.

Segundo nossos guias, no entanto, as hidrelétricas no país são incontáveis. A fome é outro problema grave. As áreas cultiváveis são apenas 25% do território. O restante do país é de montanhas rochosas. Sem terra para plantar e excluída da economia mundial, a população norte-coreana enfrenta a fome.

Dados divulgados por organizações não-governamentais e da ONU, como o Programa Mundial de Alimentos, apontam que os coreanos sobrevivem com uma ração básica de 250 a 300 gramas por dia. O equivalente a um quarto da necessidade de uma pessoa. As últimas safras foram praticamente perdidas, a agricultura - pelo pouco que conseguimos observar - é rudimentar e arcaica. Não há máquinas no campo e, segundo essas organizações, as que existem são ainda movidas a carvão. Camponeses carregam fardos nas plantações de arroz. De acordo com nossos guias, porém, todas essas informações são semeadas pelos inimigos do país. A colheita deste ano, disseram eles, será tão, mas tão grande, que não há noção de número de toneladas.

Também contam que não falta comida nos lares norte-coreanos. E aí dão uma explicação capaz de desafiar qualquer conceito econômico. O Estado compra o quilo de grãos por 8 centavos de won, a moeda local. Vende por 6. Além disso, uma família com quatro pessoas tem direito a receber 26 quilos de arroz, mais legumes, frutas, carnes, etc. Pedimos para visitar uma das chamadas tendas, onde a população faz as compras. Não houve modo de convencê-los. E, por fim, nos levaram a uma loja onde eram vendidos produtos para turistas que até preço em euro tinham. Como se fosse pouco, nos disseram: é aqui que o povo faz as compras. O Estado, explicaram, não cobra impostos, já que toda propriedade é dele. Mas como é que o Estado arrecada? Eles não conseguiram achar uma explicação plausível.

Os apartamentos em Pyongyang, afirmavam eles, não têm menos que 120 metros quadrados. E as casas, maiores, são destinadas aos "mestres, doutores e merecedores". Quem são os merecedores, ainda não sei.

Quis comprar fósforos, para minha coleção e para a coleção do filho de um amigo diplomata. Nunca foi tão difícil em toda minha vida. Tentei vários dias, sem sucesso. Acabei ouvindo que não há fósforos na Coréia do Norte. Cigarros são acendidos com isqueiros e todos os fogões têm acendimento automático. Em uma de nossas rápidas viagens pelo interior, Ana Paula olhou pela janela do ônibus e viu uma ponte caída. Fez um comentário: "O que aconteceu com essa ponte que caiu?" O senhor Kim, rapidamente, respondeu: "Não caiu." Estupefata, ela olhou e repetiu: "Mas caiu, ela está no chão." O diálogo non sense durou alguns segundos. Irritado, o senhor Kim encerrou a conversa: "Caiu, mas foi na guerra." Tudo que pudesse não estar perfeito, era explicado por eles como algum resquício da guerra. A essa altura eu não sabia se ria ou se chorava.

A Coréia é uma nação com cinco mil anos de história e de cultura. Ambas foram varridas do mapa por Kim Il-sung e seus seguidores. O Grande líder, Grande General, Sol da Humanidade ou Pai do Povo (alguns dos adjetivos usados para referir-se a ele) era filho de uma família simples, de camponeses, e contam que, muito cedo, percebeu a situação de opressão em que vivia seu povo sob o domínio japonês. Suas mais modestas biografias relatam que, aos 12 anos, Kim Il-sung estudava e conhecia "profundamente" a dialética marxista.

Na juventude, dizem os livros, passou a liderar as guerrilhas contra os japoneses no leste da Mandchúria e nas florestas ao norte da Península Coreana. Com o fim da 2.ª Guerra e a liberação do norte, Kim Il-sung foi posto no comando pelas tropas soviéticas de Stalin. Ao assumir o poder, Kim Il-sung recontou a história de sua nação, implantou um regime totalitário - onde o Estado controla tudo e todos - de inclinação comunista, autocrático, que se justifica em si mesmo e na figura de uma única pessoa. É quase um milagre que o país ainda se mantenha assim em 2005.

Em muitos anos de trabalho como repórter pude conhecer países e mazelas de todos os tipos. Ricos e pobres, com palácios e favelas. Há pouco tempo estive no Haiti, onde o Brasil comanda a força militar da Missão de Estabilização da ONU. Sei que a história lá é outra. Os haitianos são vítimas de outras distorções. Nesse caso, dos desmandos de ditadores que solaparam o país, mas não conseguiram sepultar a identidade de um povo. Os haitianos permanecem dentro da lógica humana, mesmo que seja no que ela tem de mais miserável.

Na Coréia do Norte, não encontrei nenhuma lógica que torne racional a vigilância e a falta de liberdade absoluta que reinam por lá. Fomos impedidos pelos nossos guias de manter contato com a população, que víamos apenas a distância. Não é possível saber se as pessoas são felizes, como é o cotidiano de suas vidas. Elas são impedidas de falar e sempre que encontramos moradores da cidade, eles estavam cuidadosamente instruídos para repetir o discurso oficial. Ao fim da viagem, foi triste constatar que nossos guias se esforçaram tanto para nos convencer de que estávamos em um país perfeito, com um povo tão feliz, que exageraram na dose. Lembrei de algumas histórias do stalinismo soviético, onde dizem que o regime se especializava em montar cenários perfeitos para mostrar aos visitantes. A Coréia do Norte acabou parecendo isso. A luz acendia, nós entrávamos, assistíamos, a cortina baixava e tudo terminava. E o povo parece ser um figurante do grande espetáculo criado por Kim Il-sung. Mas se, para nós, a constatação é motivo de espanto, para nossos guias é de orgulho. Ou como nossa guia Kim Clara não se cansava de repetir: "Somos uma sociedade monolítica. Somos um só nos nossos objetivos, conceitos e opiniões."