Título: 'Iraque não é problema só dos EUA'
Autor: Der Spiegel
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/11/2005, Internacional, p. A20

Se os radicais islâmicos vencerem, efeitos serão sentidos em todos os países com grande população muçulmana, adverte ex-secretário

O ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, de 82 anos, fala sobre os riscos da guerra do Iraque, os choques com Europa e o futuro papel da China na política global. O Iraque se tornou um grande problema para os EUA. O que precisa acontecer para o Iraque atingir a estabilidade e permanecer unido?

O Iraque já não é um problema apenas dos EUA. Não importa o que se pense sobre as primeiras decisões (americanas). Se os radicais islâmicos vencerem, os efeitos serão sentidos em todos os países com grande população muçulmana. Em regiões como o Sudeste Asiático, e até na Índia, isso seria visto como uma vitória dos jihadistas sobre o mundo tecnicamente superior ao qual eles declararam guerra. Deveríamos nos sentar com nossos aliados e com todos os outros países envolvidos, e analisar como a situação política no Iraque pode ser estabilizada. O reconhecimento internacional é parte importante dessa estabilidade.

Mas os EUA parecem ter perdido o otimismo. A maioria dos seus cidadãos acha que a intervenção militar foi um erro. Será que a guerra em casa, nos EUA, foi perdida?

Tive uma experiência desse tipo na Guerra do Vietnã. É dessa perspectiva que examino agora a guerra no Iraque. O governo Nixon, ao qual eu pertencia como conselheiro de Segurança Nacional, herdou uma guerra que não tinha começado. Membros importantes do governo que havia começado a guerra uniram-se depois ao movimento pela paz. Nosso maior desejo era encerrar a guerra. E queríamos encerrá-la de maneira que a estabilidade internacional não fosse ameaçada. Também não queríamos prejudicar o papel que os EUA tinham na defesa de seus aliados.

Como é possível alcançar esses dois objetivos no Iraque?

Para levar a guerra do Iraque a um fim, precisamos de um diálogo apropriado nos EUA e da boa vontade de todos os envolvidos. Não faz o menor sentido, agora, estabelecer um cronograma para a retirada das tropas. É o caso de se perguntar: será possível que o Iraque seja destruído em conseqüência de nossa situação política doméstica? Já experimentei um pouco disso. Todos deveriam fazer o máximo para pôr fim à guerra de modo responsável.

Na Europa, há uma escola de pensamento que gostaria de ver esse continente como contrapeso aos EUA.

Sim, essa tendência existe. Li comentários na Spiegel indicando que a política externa alemã pretendia enfrentar cara a cara os EUA. Isso poderá ser necessário em algumas situações, mas confrontar os EUA não deveria ser fator determinante em política externa.

Muita gente na Alemanha acha que o caos no Iraque é uma prova cabal de que a guerra foi um erro.

A Alemanha manobrou para ficar fora da fase militar da guerra. Seria justo o governo americano perguntar que alternativa poderia ter havido. Depois do 11 de Setembro, era difícil imaginar que o regime de Saddam continuaria intocado. A ONU confirmou muitas violações do acordo de cessar-fogo de 1991. Saddam possuía petróleo, tinha o maior Exército da região e havia bem fundadas preocupações de que pudesse ter armas de destruição em massa. A decisão de fazer algo estava fundada em boas razões. Se ainda se pode dizer isso hoje, é outra questão. Mas também penso, desde o começo, que é falso acreditar que a ocupação do Iraque seria tão sem problemas como as da Alemanha e Japão.

A democracia no Iraque e Oriente Médio é a solução do problema?

O conceito ocidental de democracia baseia-se na idéia de que o perdedor de uma eleição tem a possibilidade de sair vencedor na eleição seguinte. Mas, no caso de um país étnica ou religiosamente dividido, em que minorias não vivem pacificamente juntas, esse equilíbrio necessário não pode ser adequadamente assegurado pela democracia. Quando cada grupo étnico se arma, não surpreende que o Exército de um Estado seja visto por parte da população como uma milícia ideológica.

O sr. está escrevendo um livro em que deseja estabelecer diferenças básicas entre estadistas e profetas.

Sim, estadistas pensam em termos de história e vêem a sociedade como organismo. Profetas são diferentes, crêem que objetivos absolutos podem ser alcançados no futuro. Mais gente foi morta por cruzados que por estadistas.

Um dos profetas foi Mao, que, num novo livro, é retratado como o assassino em massa do século 20.

É verdade que ele causou uma incrível quantidade de sofrimento a seu povo, e é um exemplo dos profetas sobre os quais escrevo. Quando Richard Nixon se encontrou com Mao, em 1972, disse a ele que seus ensinamentos tinham transformado a cultura e a civilização da China. Mao respondeu: "Tudo que eu mudei foi Pequim e alguns subúrbios." Era um pesadelo para ele que, depois de 20 anos de luta e todos aqueles esforços para chegar a uma sociedade comunista, tinha alcançado tão pouco de valor duradouro. Foi o que o levou a sacrificar mais e mais vidas para terminar sua obra enquanto estava vivo. Acreditava que, se não fosse assim, seu legado seria destruído.

Por qual estadista o sr. tem mais respeito - Bismarck, Churchill?

Tenho muito respeito por Charles de Gaulle, também. Bismarck eu valorizo, mas condicionalmente. Ele conseguiu unificar a Alemanha, mas também deixou os que vieram depois dele com uma tarefa que ia além de seus meios. Pois a política externa de Bismarck dizia respeito, principalmente, ao equilíbrio de poder. Faltava, aos que vieram depois dele, a prudência que o caracterizava.

Voltando aos líderes de hoje: a política externa americana mudou nos últimos meses. Um membro do "eixo do mal", a Coréia do Norte, agora está escalado para receber bilhões de dólares em ajuda em troca de não continuar seu programa nuclear militar. E no caso do Irã, apesar dos contratempos, o governo Bush está recorrendo à diplomacia. Essa mudança de rumo é resultado de uma convicção ou de pura necessidade?

Até onde posso ver, o governo não se sente sob tanta pressão quanto a mídia noticia. E a política americana é normalmente um resultado de raciocínios pragmáticos, não filosóficos. Ninguém disse, em Washington, que agora preferimos o multilateralismo. No caso da Coréia do Norte, estou otimista. Não é um problema americano. A disseminação de armas de destruição em massa é algo que afeta a todos nós. Nem Japão, nem China, nem Rússia querem ver outra potência nuclear na Ásia. Esses esforços conjuntos conduzirão a um resultado.

O sr. está igualmente otimista sobre a situação do Irã?

Em algum momento, em Washington, a decisão mais importante terá de ser tomada. A questão é quem vai ter a primazia: os que acreditam em mudança de regime ou os que defendem as negociações? Estive envolvido em processos de tomada de decisão quando havia duas superpotências. Naquela época, podia-se estar seguro de que ambos os lados exerceriam a mesma prudência antes de iniciar uma guerra atômica. Hoje, o sistema todo de relações internacionais precisa mudar. Devemos ter isso em mente quando analisamos o Irã. Os países democráticos precisam ficar de olho nas conseqüências da propagação de armas nucleares e perguntar-se o que teriam feito se as bombas de Madri fossem nucleares. Ou se os atacantes em Nova York tivessem usado armas nucleares. O mundo olharia de maneira muito diferente do que hoje olha. Então, precisamos nos perguntar quanta energia queremos colocar no combate ao problema da maior proliferação de armas nucleares.

Em que ponto o Conselho de Segurança da ONU deveria começar a tratar do programa atômico do Irã?

Deveríamos evitar outro confronto no Conselho de Segurança até sabermos exatamente o que queremos e somos capazes de alcançar. O Irã é mais importante que a Coréia do Norte. Ele é um país mais significativo e existem mais opções.

No Oriente Médio, tudo sempre se resolve em torno de interesses estratégicos e petróleo. "O acesso a recursos naturais tornou-se questão de sobrevivência para muitos Estados", o sr. escreveu certa vez. O novo "grande jogo" já começou?

Sim, em certa medida já. O acesso à energia é hoje um problema não só puramente econômico, mas político também. Na medida em que os recursos são limitados e a demanda continua crescendo, países consumidores deveriam chegar a um acordo antes de a competição causar tensões sérias.

O conflito é movido pela fome de energia da China?

Comparada com outros países, a China tem realmente uma política externa conceitual. Ela impulsiona a necessidade de se desenvolver economicamente. A globalização, por sua vez, criará mais países industrializados. Isso conduzirá a uma maior competição por recursos.

Nos EUA, há um campo político que gostaria de ser tão implacável com a China quanto foi com a União Soviética. Isso seria uma boa idéia?

O desafio é que a China é um país com população enorme que está trabalhando sistematicamente em seu desenvolvimento econômico e visando taxas de crescimento sem paralelo. O centro de gravidade da política global está se deslocando do Atlântico para o Pacífico. Mas não é um desafio que possa ser respondido pelo confronto militar ou ideológico. A China aprendeu com a queda da União Soviética que precisa se desenvolver economicamente e se tornar estável, sem abrir mão de sua doutrina comunista. A China é um Estado de partido único e o partido se chama comunista. Mas o sistema não é baseado no planejamento central. Isso significa que as pessoas podem se desenvolver de uma maneira que nunca foi possível na URSS. O sistema soviético sempre foi stalinista, mesmo durante fases de reforma. Mas, cedo ou tarde, a China chegará a um ponto em que as novas classe sociais, que emergiram graças ao sucesso econômico, terão de ser integradas no sistema político. Não há garantia de que esse processo transcorrerá suavemente.

Nos EUA, as pessoas esperam ser capazes de fiscalizar a ascensão da China e controlá-la um pouco.

O desejo de ensinar à China como ela deveria se comportar no mundo é errado. A China já existia milhares de anos antes de os EUA surgirem. Poderia mesmo se dar que o crescente poder da China se permitirá ser desacelerado. Mas, enquanto esse imenso império não se desfizer, ele se tornará um fator importante na política global.

Quando o sr. fala da China, fica claro que tem muito respeito pelo país.

Observo a China há mais de 30 anos e estou impressionado com a lógica e sabedoria com que ela lida com seus problemas. Obviamente, o sistema internacional poderá ser desequilibrado pelo poder crescente da China, se não nos prepararmos para a nova situação competitiva. Mas este é um desafio econômico, não é uma agressão ao modo de Hitler.

O sr. acha o mundo mais pacifico agora ou nos tempos da guerra fria?

Nas crises daquele período, a sobrevivência de milhões de pessoas estava em jogo. E tínhamos de ameaçar a outra superpotência de retaliação para impedi-la de fazer algo conosco. Não, aqueles não eram tempos felizes. Tivemos sorte de a União Soviética ser mais fraca do que pensávamos. Hoje vivemos num mundo em que muita coisas está em transformação. Isso causa muito medo. Mas é também um tempo de grandes oportunidades. E eu apelaria ao estadista de hoje para não permitir que o medo guie seu pensamento.