Título: `O PT passou de monopolista da ética a socialista da bandalheira¿
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/11/2005, Nacional, p. A12,13

Para o prefeito, o pior é que no governo o partido pôs em prática o oposto de tudo o que pregara em toda a sua existência

O prefeito de São Paulo, José Serra (PSDB), age como candidato a presidente da República, conversa como candidato e até pensa como candidato - mas não é candidato. Apontado pelas pesquisas de opinião como o único político capaz de vencer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006, dono de um conhecido preparo para lidar com os grandes problemas do País, capaz de refletir sobre temas áridos da economia e tendências da conjuntura internacional, José Serra vai enfrentar uma rotina de tensão nos próximos meses, quando o PSDB escolherá o concorrente do partido para disputar o Planalto. Serra precisará conquistar votos de uma máquina política poderosa, onde o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, desponta como um rival a ser respeitado, pela relevância do cargo que ocupa, pela competência demonstrada em combates eleitorais passados e pela preferência junto aos grandes empresários. Entre os eleitores paulistanos, Serra também precisa fazer um ajuste de contas. Ele ainda não completou um ano como prefeito e, ao longo da campanha eleitoral, assinou um documento, registrado em cartório, onde prometia cumprir o mandato até o fim. "Eu disse a minha verdade, naquele momento", explica Serra, referindo-se a um episódio ocorrido quando o mundo político sequer sonhava com a devastação produzida pelo escândalo do mensalão. Como prefeito, tem mostrado o estilo de quem segue problemas de perto. Acompanha as negociações na Câmara, debate projetos e intervém em disputas entre secretários. Numa prova de que se sente à vontade no posto, há dois meses mandou fazer uma pequena reforma no gabinete - onde instalou uma cama de solteiro, na qual repousa à tarde e pretende pernoitar algumas vezes, em jornadas mais cansativas. Depois de agosto, o prefeito assumiu uma atitude inusitada: uma vez por semana comparece a uma escola de primeiro grau para dar aula à criançada. Ele garante que não se trata de um ritual populista. "Este momento me deixa relaxado e me permite conhecer os dramas da educação básica de perto", afirma. Na sexta-feira, Serra concedeu a seguinte entrevista: Como se pode avaliar o governo do PT?

Não tenho nem nunca tive preconceito contra o PT. Tenho pós-conceito. Não critico as utopias petistas. Critico a obra. O exercício do poder pelo PT é a banalização do mal. O PT assumiu tudo o que havia de ruim no País para transformar em banalidade. Não é que no passado não tenham existido procedimentos errados e ilícitos. Mas agora isso adquiriu um volume e uma intensidade que não se conhecia. Como é o PT que faz, ocorre aquilo de que falava Dostoievski: "Se Deus morreu, então vale tudo." Porque o PT se apresentava como o Deus da ética em nossa vida pública. Se o PT transgride, todos podem transgredir. A transgressão passa a ser normal, para a ser a nova ética. E isso vale para tudo, a começar pela compra de votos no Congresso.

Mas quando se fala em compra de votos pode-se lembrar do presidente José Sarney, que lutou pelos cinco anos de mandato com concessões de rádio e TV no Congresso.

Mas Sarney nunca se arvorou em arauto do moralidade. O PT generalizou uma prática que podia ser freqüente, mas não era o padrão. Você tem a compra de votos, o loteamento de cargos, que chegou até às agências reguladoras, que hoje são objeto de acertos políticos. O PT organizou a confusão, em proveito próprio, entre governo, Estado e partido. Outro ponto é a burla eleitoral. O PT instaurou a idéia de que é legítimo prometer uma coisa e no governo fazer o simétrico do recíproco.

O que é isso?

É uma expressão matemática. Num caso você oferece X e no outro faz menos 1 sobre X.

Mas ninguém faz aquilo que prometeu no palanque. Em 1998, Fernando Henrique prometeu manter o real valorizado. Fechadas as urnas, ocorreu a desvalorização. Não é o simétrico do recíproco?

O governo da época até que tentou manter a moeda, pretendia fazer apenas um pequeno ajuste. Mas o mercado se impôs. O PT colocou em prática o oposto de tudo aquilo que havia pregado em toda sua existência. E comporta-se como se isso fosse natural. O superfaturamento é uma coisa permanente, sobre a qual nem se conversa mais, porque parece perda de tempo. Aqui na Prefeitura de São Paulo estou conseguindo rebaixar nossos gastos em obras em até 16%, comparados com os contratos da gestão anterior. Acho uma boa economia e sinaliza para muita coisa. Mas ninguém se interessa. Por que? Porque é banalidade. O mesmo vale para o comportamento do PT na hora de reagir e se explicar. Aquelas explicações à la Maluf, de negar o óbvio, foram elevadas a categoria nacional.

Como é isso?

De um lado, o Paulo Maluf está lutando, nos tribunais da Europa, para ficar com o seu dinheiro. Aqui, ele diz que não tem dinheiro. Antes de assumir o governo, o PT dizia que era o partido diferente. O senador Eduardo Suplicy já disse: "Experimente Suplicy, diferente de tudo o que está aí." Agora, querem nos convencer de que somos todos iguais, que somos todos contraventores. Eles querem licença para generalizar o mal. O PT passou de monopolista da ética a socialista da bandalheira. Na metafísica, o partido alimenta a retórica do dirigismo estatal. Na prática, a nomenclatura quer andar de Land Rover.

Como esse comportamento repercute no País?

É a desmoralização do debate. Nesse ambiente, discutir o futuro do Brasil parece uma conversa surrealista, sem sentido. O PT desmobilizou o País.

Por que o PT desmobiliza?

Porque a idéia de fundo consiste em dizer que este governo não tem responsabilidades nem culpas. A culpa pela febre aftosa é dos criadores de gado. A responsabilidade pelo câmbio baixo é do câmbio flutuante. Os juros são altos porque o consumidor não sai da cadeira para lutar por seus direitos. Essa postura estimula o vale-tudo, o individualismo agressivo. Pelo PT, nós chegamos ao fim da história. Agora que aquele pensador americano, o Fukuyama (Francis Ford Fukuyama, autor de O Fim da História) volta atrás, e admite que o Estado Nacional tem um papel muito importante, o PT se divide entre setores que querem o socialismo tardio e aqueles que aderiram com atraso ao capitalismo.

Como foi o seu encontro com o ex-ministro José Dirceu?

Dirceu foi muito correto. Faz uma análise com críticas, mas nada que pudesse ser usado contra o governo. Dirceu era o principal adjunto de Lula. Depois do presidente, é o principal responsável pelo que está aí.

Como o senhor vê esse esforço dele para defender o mandato, no Supremo Tribunal federal, no Congresso, em toda parte?

Acho que o Dirceu será cassado. Disse isso a ele. É justo. Ele tem responsabilidade política por tudo. Mas, correndo o risco de dizer uma heresia, acho esse espírito de luta dele um ponto positivo. Sem querer ser agressivo, acho uma pena que esse espírito de luta não estivesse do lado do bem. Mas é um comportamento admirável.

O senhor fala de questões éticas no PT. Mas o senador Eduardo Azeredo envolveu-se com um esquema muito parecido.

Este caso não tem a extensão nem a profundidade do mensalão. Não há evidências de desvio de dinheiro do governo de Minas Gerais. Se surgirem, o PSDB vai enfrentá-las.

Nunca houve caixa 2 em campanhas do PSDB?

Há evidências que sim. Mas este não é o centro da questão. Quando essas denúncias contra o PT surgiram, eu dizia que o PT iria tentar transformar tudo num problema de caixa 2, como se fosse apenas um caso de contribuições eleitorais. O problema é desvio de recursos, corrupção, dinheiro do contribuinte para o bolso de dirigentes partidários. Caixa 2 pode envolver sonegação, mas não envolve, obrigatoriamente, corrupção.

Uma entrevista da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, ao Estado mostrou divergências no governo. Como o senhor vê isso?

Não tenho procuração para defender o Antonio Palocci, mas acho que neste caso ele está cumprindo seu papel. Em todo governo a Fazenda tem a função de segurar gastos. Mas um governo é feito de poderes e contrapoderes. A culpa, nesse caso, não é do Palocci, mas do presidente. Ele é que precisa dar o equilíbrio, tomar decisões e apontar o rumo. O presidente arbitra, opina e impõe. Não pode abrir o debate. Ele tem de estar acima. Seu papel é insubstituível, ao menos no presidencialismo. Infelizmente para o Lula, ninguém pode cumprir essa função.Só ele pode dizer como o governo pode gastar. Mas isso fica difícil quando se pensa no poder pelo poder.

O senhor vê aspectos positivos na ação da equipe econômica?

A luta pelo equilíbrio fiscal é importante. Mas a execução orçamentária é muito falha. Basta ver o que foi para a aftosa. A verba que se destinou ao Fundo Nacional de Segurança é absurda: gastaram 4% ou 5%. Essas falhas são um problema do conjunto do governo. Às vezes, saber gastar é mais difícil do que saber economizar. Aquilo que você cortou está cortado e pronto. Já os gastos precisam ser bem planejados e não podem atrasar. Um governo tende a funcionar lentamente. Aqui na Prefeitura, por exemplo, uma obra leva, em média, de nove meses a um ano para começar. Você tem a licitação do projeto básico, depois o projeto básico, depois a licitação do projeto executivo, depois a licitação da obra, as contestações judiciais, os diversos pareceres das diversas áreas. Se você não lutar para andar depressa, não consegue sair do lugar.

O senhor é um conhecido crítico da política econômica. Por quê?

Lula viveu um céu de brigadeiro em matéria de conjuntura externa. Poucas vezes se viu uma situação mundial tão favorável. Mesmo assim, nosso crescimento será de 3,5%. Um estudo recente do Fundo Monetário Internacional mostra que entre 2003-2005 o desempenho da economia brasileira foi fraquíssimo. Enquanto a média de expansão da economia mundial é de 4,7% ao ano e a média das economias em desenvolvimento é de 6,5%, o Brasil deve crescer apenas 3,% ao ano, o que corresponde a apenas dois terços do crescimento mundial e menos da metade do crescimento dos países emergentes.

Por que isso ocorre?

A origem está no câmbio sobrevalorizado e no juros altos. Produziu-se uma política econômica que terá conseqüências adversas no futuro. O câmbio terá de ser corrigido um dia. Essa correção envolve custos e riscos. Não é o governo que fará a correção. É o mercado. Mas é sempre uma opção que envolve desafios, pois pode pressionar os preços. E aí você faz o que? Sobe de novo os juros para impedir a volta da inflação? Se você tivesse uma política de juros declinantes teria um câmbio diferente. Reportagem da Folha mostra que a desvalorização do dólar no Brasil foi a maior da América Latina: 17%. Não há país que se desenvolva com juros estratosféricos e câmbio supervalorizado. A China, a Índia crescem na direção oposta. Falam muito do milagre chileno. Mas a virada da economia deste país, entre 1983 e 1987, ocorreu com o câmbio desvalorizado em 50% em termos reais.

Apesar disso, o desemprego tem caído no País.

O governo do PT quer nos fazer acreditar que numa economia globalizada o desemprego é necessariamente alto. Quando se concorda com isso, é possível festejar os números atuais. Mas isso não é verdade. Não existe economia mais globalizada do que a americana e ali, no governo Clinton, o desemprego andou perto de zero. Não é a globalização que produz o desemprego, mas o crescimento lento. Um dos mitos da economia americana dizia que o desemprego não poderia ficar abaixo dos 4% sem provocar inflação. O governo Clinton mostrou que isso estava errado. A arte da política econômica consiste em ultrapassar os limites conhecidos.

Que limites são esses?

Hoje se diz que é preciso juros siderais, se não teremos a volta da inflação. Mas se baixar os juros e corrigir o câmbio gradualmente, terá mais investimento voltado para exportação, mais crescimento e mais emprego.

Mas a equipe econômica tem vários argumentos para defender a taxa atual de juros.

O argumento mais freqüente é que os juros são altos por causa do déficit. Mas o déficit é da ordem de 2,5% do PIB. Outro argumento é a incerteza sobre o futuro. Imagine a incerteza sobre a Argentina, a China ou a Índia.

Então por que eles não caem?

Tirando interesses, ideologias e outros fatores, os juros permanecem altos porque se tem receio de que não se consiga transitar para outra situação de equilíbrio. É como a pessoa que olha para a outra margem do rio e teme ser levada pela correnteza. A taxa de juros não tem influência só na atividade econômica. Ela desequilibra o setor público. Mesmo assim, não dá para fazer uma política irresponsável e fazer redução brusca de uma hora para outra. É preciso sensatez e perícia.

O crescimento não depende também de taxas de investimento?

Existe a visão de que a taxa de investimento precede o crescimento. Isso é válido para uma pessoa que vai comprar uma bicicleta. Mas não é válido para a economia de um país. Se você investe mais, poupa mais, e vice-versa. Outro erro é achar que só medidas microeconômicas importam. Claro que importam. Investir em educação é importante. Lei de falências é importante. Também é preciso flexibilizar o mercado de trabalho. Ninguém pode esquecer de reduzir o custo da burocracia e aprimorar o funcionamento do Judiciário. Mas isso, por si, não resolve. Uma boa política microeconômica pode dar 0,5% de crescimento a mais. Não vamos minimizar: estamos falando de alguns bilhões de reais. Vamos reconhecer que precisamos de mais e aí é preciso falar de juros e câmbio. Emprego depende acima de tudo da taxa de crescimento. Criou-se uma visão de que o crescimento não resolve. É uma ideologia, à qual o PT se adaptou muito bem.

A oposição também tem culpa, porque dizia que crescimento sem distribuição de renda não adianta.

O crescimento é condição necessária para tudo. A ditadura não foi devorada apenas pela estagnação, mas também pelos efeitos que o crescimento prolongado, mesmo desigual, provocou na sociedade: o crescimento da classe média e da classe operária; o aumento da formalização no mercado de trabalho e nas relações sociais. O crescimento sempre faz bem. Melhora a auto-estima, cria laços sociais mais sólidos, melhora a qualidade da democracia.

Esse sua disposição de enfrentar os juros, discutir o câmbio e mudar a economia lembra o figurino de um político intervencionista.

Intervencionismo é controle geral de preços. Ou usar o Estado para dominar a produção de insumos básicos. Aquele Estado produtor e interventor não voltará. Mas não se pode ser a favor do Estado inerte, da pasmaceira. Sou favorável ao ativismo governamental, que é remover obstáculos, estimular, criar concorrência. Um governante é indispensável nisso. Quando fizemos os genéricos na Saúde, ou brigamos pelas patentes, fizemos ativismo. Não tem nada a ver com estatismo. Os EUA têm uma ativa política tecnológica, dirigida pelo governo. Só em Saúde eles gastam U$ 17 bilhões do Tesouro para subsidiar pesquisas. O Chile tornou-se um grande exportador de frutas tropicais graças a uma ação do Estado chileno, colaborando com a iniciativa privada.

O governador Geraldo Alckmin tem sido muito elogiado por empresários como bom candidato a presidente. Como o senhor vê isso?

Ele é um bom candidato. Ter o apoio dos empresários não é condição para ganhar eleição. Mas é um dado positivo.

Até agora o senhor tem sido apontado nas pesquisas como o único adversário capaz de vencer o presidente Lula em 2006. Como vê isso?

Fico muito satisfeito. Fui ministro do Planejamento e da Saúde. Fui senador e fui deputado federal. Vejo isso como um reconhecimento. Entre pesquisa e ser candidato a presidente há uma distância grande. A pesquisa não define tudo.

O que vai definir a escolha do candidato do PSDB a presidente?

O tempo e as circunstâncias às vésperas das definições, que devem ocorrer por volta de março. Hoje o mais importante é avaliar o governo do PT e apresentar nossas concepções para a sociedade.

Existe um pacto de não agressão com o governador Alckmin?

Nunca conversamos sobre não agressão, mas sempre tivemos uma relação próxima, uma longa convivência no PSDB.

Ele apoiou sua campanha a prefeito com a condição de que fosse apoiado na campanha para presidente?

Nunca houve este entendimento. Não é do feitio dele nem do meu. Você não perguntou, mas digo que não tenho expectativa de ser candidato.

Mas então por que o senhor tem falado tanto sobre questões nacionais?

Passei minha vida política discutindo questões nacionais. Quando era presidente da UNE já tentava formular uma visão nacional das coisas. Acho que foi o Elias Canetti que disse que olhava o mundo da janela de sua casa de infância. Eu devo olhar para o mundo e para o Brasil da janela da casa onde morei, no Alto da Mooca. Sou prefeito, fui deputado, senador, ministro.

Os problemas da cidade de São Paulo lhe dão tédio?

Pelo contrário. Você tem retorno imediato de tudo o que faz. Todo mundo tem uma sugestão a apresentar ao prefeito. Mesmo quando você vai a um desfile de modas, aparece uma modelo bonita e sorridente para cumprimentar o prefeito e pedir que mude a mão da rua dela.

Por que o senhor declarou e assinou uma declaração de que iria cumprir seu mandato até o fim?

Eu disse a verdade. Era o que sentia naquele momento.

O senhor se arrepende de ter dado esta declaração?

Primeiro, não posso me arrepender de ter dito a verdade. Segundo, era inevitável que isso fosse perguntado reiteradamente durante a campanha.

O que mudou exatamente?

A movimentação que existe em torno de meu nome é colocada por fatores alheios a mim, como a opinião de outros e pesquisas eleitorais. Isso não significa que eu fique envolvido com o assunto pessoalmente. Meu exercício cotidiano é não me envolver e fazer meu trabalho.

Com o olhar de hoje, como se pode imaginar que será a campanha presidencial? O senhor acha que a economia vai dominar a discussão?

A economia é sempre importante, mas acho que não será o grande assunto. A campanha vai girar em torno de outros temas, como educação, saúde. O País também vai querer discutir rumos e projetos políticos e, especialmente, fará seu balanço do governo do PT.