Título: Anestesia geral
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/11/2005, Nacional, p. A6

O prefeito de Uberaba e ex-ministro dos Transportes Anderson Adauto deu uma aula magna de malfeitorias em seu depoimento de quarta-feira na CPI da Compra de Votos. Não inovou - a não ser pela desfaçatez travestida de franqueza - ao tratar a prática do caixa 2 com a naturalidade dos justos. Seguiu a trilha de antecessores na abordagem do tema e, como eles, socializou o prejuízo com os colegas de profissão, generalizando a tudo e a todos a autoria do mesmo crime.

Avançou, porém, no tocante a uma prática denunciada lá no início por Roberto Jefferson, mas depois deixada à margem das investigações: o uso do cargo público por indicação política para arrecadar dinheiro com a finalidade de saldar dívidas passadas ou fazer caixa para campanhas futuras.

Anderson Adauto disse o seguinte, a título de justificativa por ter recorrido a Delúbio Soares em busca de recursos: "Eu sabia que poderia resolver as dívidas com os fornecedores do ministério, mas preferi procurar o tesoureiro."

Em meio à profusão de ilícitos revelados a todo instante, a declaração não causou maior escândalo, talvez devido à insensibilização geral dos espíritos frente ao volume de barbaridades em cartaz.

De resto, comportaram-se todos como se não tivesse havido ali, no mínimo, um indicativo de prova testemunhal capaz de esclarecer o que se passa nos escaninhos da administração federal.

Se Anderson Adauto como ministro "sabia" que teria perfeitas condições de usar o posto para desviar parte dos contratos de prestação de serviços em proveito próprio, estava, portanto, informando à CPI que o crime é recorrente, faz parte dos usos e costumes, é praticamente uma prerrogativa de um titular de pasta ministerial.

Confirmou o que se supunha, mas nunca havia sido dito assim, com todos os efes e erres.

Ministrada a lição, mestre Adauto saiu dali ileso, posando de vestal por ter aberto mão de tão líquido direito de desviar dinheiro público e ter procurado o tesoureiro de um outro partido para cobrar dele recursos cuja origem, disse, pouco se lhe dava conferir.

Fosse dinheiro sujo ou limpo, não era problema dele. Da mesma forma, não lhe pareceu nada extraordinário - e pelo jeito à CPI também não - o fato de um partido transferir dinheiro a outro, como se fosse agora naturalíssima a prática do caixa único suprapartidário, a partir do qual uma legenda-mãe sustenta outras que, em troca, se mantêm sob sua esfera de influência política e funcional.

Pode-se até não se dar a isso o nome de mensalão, mas trata-se assumidamente de um compromisso comercial, um contrato de compra e venda cuja condenação pública mediante punição severa teria mais efeito sobre a correção de condutas do que qualquer mudança na legislação.

Mas a suas excelências é mais conveniente atribuir iniqüidades à ausência de reforma política do que imprimir moto próprio um certo grau de pudor às faces.