Título: Superávit primário - faça como eu digo...
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Objeto central da disputa Dilma x Palocci, permanece nas manchetes o superávit primário governamental, definido como receita menos despesas, excluídos destas os juros. Ainda ontem, a principal manchete deste jornal falava de um acordo que manteria o ministro da Fazenda, com este exigindo dois compromissos principais: uma declaração pública de apoio do presidente e a elevação da meta de superávit primário de 4,25% do produto interno bruto (PIB) para um valor entre 4,6% e 4,7%, este já alcançado no ano passado.

Ao cidadão comum escapam o significado e a relevância de toda essa discussão sobre o superávit primário, uma expressão muito usada no Brasil nas discussões sobre as finanças públicas. Digo no Brasil porque histórica e internacionalmente tais discussões têm como foco o déficit orçamentário ou final, aqui também chamado de nominal. Não me lembro de encontrar referências a superávit primário em livros ou textos, nem de tê-lo encontrado na internacionalmente prestigiosa revista The Economist, que consulto há décadas. Ela só fala do "budget déficit", o orçamentário ou final.

No Brasil a expressão superávit primário surgiu em meados da década passada, no contexto de negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com o objetivo de mostrar o "esforço fiscal do governo". Entretanto, dada a tendência das finanças públicas desde então, essa história de esforço fiscal é uma tremenda enganação.

O que há, de fato, é um enorme esforço não do governo, mas do contribuinte, mediante contínuo aumento da já enorme carga tributária, esforço esse mal recompensado pela imprudência governamental, que aumenta continuamente as despesas. Com isso o superávit primário ainda se revela insuficiente para impedir o crescimento da dívida, pois permanece um déficit final, em última análise o que realmente interessa.

Nesse contexto, seria ainda mais imprudente, como querem adversários de Palocci no governo e nas bases petistas, aumentar ainda mais as despesas, com o que seria reduzido o superávit primário e ampliada a dívida. Na seqüência, poderiam vir também novos aumentos de juros, pois a dívida do governo se tornaria um risco ainda maior, e pressões para ampliar novamente a carga tributária.

É interessante que esse tipo de recomendação não faria nenhum sentido se examinado à luz da boa gestão das finanças pessoais. Suponhamos uma pessoa que visse sua dívida aumentar permanentemente por conta dos juros, pois pagava apenas parte deles com seu "superávit primário pessoal", sobrando um saldo que se acrescentava à dívida. O pior conselho para essa pessoa seria o de ampliar ainda mais seus gastos, pois isso reduziria esse superávit e ampliaria ainda mais seu endividamento. Mas isso é o que a turma da gastança faz no governo ao recomendar o que não faria no âmbito de suas finanças pessoais. Isso se chama irresponsabilidade fiscal, mesmo se passasse pelos crivos, infelizmente não tão estreitos, da lei que trata do assunto.

Os gastadores, entretanto, sabem desse inconveniente e douram sua proposta com um complemento particularmente atraente aos ingênuos, o de reduzir logo e significativamente os juros da dívida. Não há quem não defenda uma redução dos juros, mas a questão está na forma de fazê-lo.

Um dos aspectos negligenciados pelos que propõem uma redução simplista seria a necessidade de "combinar com os russos". Essa foi a metáfora usada, num outro contexto, pela ministra Dilma na sua famosa entrevista a este jornal no dia 9 deste mês, a qual trouxe ainda mais à tona seus desentendimentos com o ministro da Fazenda. A necessidade de combinar com o adversário foi levantada por Garrincha na Copa do Mundo de 1958, quando o time brasileiro era orientado pelo técnico Feola sobre como vencer com essa ou aquela jogada o da antiga União Soviética.

O "adversário" do nosso devedor no plano pessoal seria o gerente de banco, que certamente ficaria perplexo diante de um cliente cara-de-pau que lhe dissesse pretender gastar ainda mais e reivindicasse juros menores, ainda que ampliando sua dívida com o banco. Provavelmente, o devedor só conseguiria fazer isso por meio de uma linha de crédito de juros mais altos, como a do cheque especial, pois estaria aumentando seu risco para o credor.

Entretanto, se esse cliente demonstrasse ao gerente que estaria gastando menos, ampliando o seu superávit primário e evitando o crescimento da dívida, estaria em condições de reivindicar até juros mais baratos, pois estaria diminuindo o seu risco.

É esse o caminho que o governo deveria trilhar, favorecido pelo fato de que sua receita está sempre aumentando com o crescimento do PIB. Nem precisaria reduzir todos os seus gastos. Se mantivesse constante grande parte deles, desvinculando-os desse aumento da receita, obteria superávits primários maiores. Estaria, assim, mostrando seu empenho em se ajustar e se credenciando a juros menores. Estes, num círculo virtuoso, facilitariam ainda mais o ajuste de gastos, cujo objetivo final seria evitar o crescimento da dívida e alcançar a queda desta como proporção do PIB.

Portanto, com suas propostas de mais gastos e menor superávit primário, o que se vê é essa gente na linha do "faça como eu digo, mas não como eu faço", ou faria, no âmbito de suas finanças pessoais. Ou seja, o que não seria bom para essa gente o seria para o Brasil, como se este fosse não fosse o conjunto de seus cidadãos e para o qual valessem outras regras de boa gestão financeira que não as ditadas pelo bom senso, a matéria-prima básica dos manuais de economia e finanças.