Título: O insulto nosso de cada dia
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/11/2005, Nacional, p. A6

O governo e o partido liderados por Luiz Inácio da Silva têm uma relação tortuosa com o desaforo: aceitam bem quando vem dos companheiros, reagem com veemência se o atacante é da oposição e lhes parece frágil, mas amenizam o tom e tratam com certa deferência o ofensor com potencial de revanche de alto risco.

O tom fidalgo usado pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, para se referir a Rogério Buratti, que o acusa de permitir o desvio de dinheiro de contratos de prestação de serviços na prefeitura de Ribeirão Preto para o caixa do PT, é um clássico desse modo de gerenciar afrontas graves com ações ligeiras e vice-versa.

Roberto Jefferson disse e continua dizendo mundos e fundos do PT e de seus integrantes e não é nem de leve chamado às falas, muito menos aos tribunais. Temos o exemplo recente da suspeita levantada pelo ex-deputado (já sem imunidade nem foro especial na Justiça) de que petistas tenham recebido recursos do narcotráfico e da contravenção.

A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, chama de rudimentar um plano de ajuste fiscal elaborado pelos Ministérios da Fazenda e do Planejamento ¿ supostamente com conhecimento e autorização do presidente da República ¿ e o gesto não merece reparo explícito.

Ao contrário, Palocci foi instado a ¿parar¿ com a briga.

O governador de Mato Grosso do Sul, Zeca do PT, abandona qualquer cerimônia e simplesmente qualifica de ¿besteira¿ a opinião da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sobre a construção de usinas de álcool nas proximidades do Pantanal, e o ato não causa espécie aos companheiros.

Já os desaforos produzidos na ala da oposição não merecem tanta condescendência. Ou, por outra, merecem sim, dependendo da paúra que inspira o desaforado.

Contra o líder do PSDB no Senado, Artur Virgílio, cuja ousadia o dispõe a surras e a uma virulência verbal imprevisível, não houve reação além de protestos formais quando afirmou que ao presidente Lula não sobrava escolha : ou era ¿idiota¿ ou ¿corrupto¿.

Talvez porque não seja faixa-preta de corpo e alma como Virgílio, a tucana Zulaiê Cobra é alvo de um processo de pedido da cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar, apresentado pelo presidente do PT, Ricardo Berzoini, por ter chamado o presidente Lula de ¿bandidão¿ e o deputado José Dirceu de ¿chefe de quadrilha¿.

Pode não ser, e não é, a maneira mais civilizada de falar dos outros, autoridades ou não, mas soa incompreensível o critério de reação quando o ¿bandidão¿ de Zulaiê é considerado quebra de decoro e o ¿corrupto¿ de Artur Virgílio é recebido como regra do jogo parlamentar.

Em outros tempos, no longínquo ano de 2004, o senador Tasso Jereissati, até então um dos oposicionistas mais amenos com o governo, foi levado aos tribunais por ter mexido com os brios de Delúbio Soares. Defendendo alterações no projeto das Parcerias Público-Privadas (sumidas...), Jereissati disse que, daquele jeito, o projeto era ¿roubalheira para o Delúbio deitar e rolar¿.

O Supremo Tribunal Federal arquivou a interpelação contra o senador, assim como dificilmente irá a algum lugar a representação contra a deputada no Conselho de Ética, pois ela tem imunidade de voz e voto.

O problema não é a busca da reparação aos desaforos, mas o critério de separação das injúrias entre as que provocam reação e as que provocam comportada absorção.

Pelo visto, a norma de escolha guarda relação com a força do agressor, sua munição de contra-ataque sabida ou presumida, o momento e o grau de interesse na defesa do agredido.

Por essa medida, Delúbio Soares foi merecedor de uma reverência protetora à qual ainda não tiveram acesso os ministros da Fazenda e do Meio Ambiente.

Questão de prestígio ou até mesmo de hierarquia na ordem natural das coisas atinentes ao aparelho.