Título: Camboja aluga até campo da morte
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2005, Internacional, p. A23

Num lugar onde corrupção e impunidade andam juntas, governo faz caixa vendendo ou alugando tudo que pode, como se o país fosse fechar

CHEUNG EK, CAMBOJA - Não há muito para ver, a não ser buracos no chão e uma torre envidraçada que guarda uma parte dos 8 mil crânios de pessoas que foram massacradas aqui. Este é o mais venerado entre centenas de campos da morte do Camboja e há décadas se tornou um local de lembrança do 1,7 milhão de pessoas que morreram durante o brutal domínio do Khmer Vermelho, de 1975 a 1979. Muitos cambojanos ficaram chocados quando o governo anunciou, no início do ano, que havia alugado o campo da morte de Cheung Ek para que uma empresa japonesa o administrasse. ¿Isso é comercializar as memórias¿, disse na época Youk Chang, diretor do principal arquivo de materiais sobre o Khmer Vermelho. ¿As memórias não podem ser vendidas.¿

Mas o acordo não deveria causar surpresa. O mercado está aquecido para bens de governo e bens imobiliários de alto padrão ¿ universidades, hospitais, delegacias, prédios ministeriais ¿, que estão sendo vendidos como se o Camboja estivesse fechando. Num país em que a corrupção anda de mãos dadas com a impunidade, quase tudo parece estar à venda ou para alugar: florestas, mananciais, concessões de minas, rotas aéreas, registros navais, armas, mulheres, meninas, meninos, bebês. Muito antes do negócio com o campo da morte, o governo deu a uma empresa bem relacionada uma concessão de milhões de dólares para explorar o símbolo nacional do país, o templo de Angkor Wat. O valor das terras na capital, Phnom Penh, triplicou nos últimos cinco anos e o mercado está tão predatório que até pequenos lagos estão sendo aterrados para criar mais espaços para vender. ¿Parece haver um frenesi por agarrar tudo que se pode¿, disse Miloon Kothari, enviado especial da ONU para verificar as condições de habitação, em uma visita aqui no final de agosto.

Os mais destacados dos atuais negócios envolvem acordos de troca com algumas empresas privadas bem relacionadas. Por esses acordos, o empreendedor fica com um edifício no centro e promete construir outro na periferia da cidade, onde a terra vale menos. Em um negócio, a Real Universidade de Belas Artes, perto da embaixada francesa em Phnom Penh, está sendo trocada por um edifício em construção num terreno em litígio nos limites da cidade.

Em outro, a sede da polícia municipal foi trocada por um novo prédio na periferia. Negócios parecidos foram feitos com delegacias em Siem Reap e Battambang, segundo o Licadho, um dos principais grupos de direitos humanos do país. A principal cadeia, atrás do palácio real, foi esvaziada para um empreendedor que quer construir uma prisão na periferia.

O Cambodia Daily relatou que um empreendedor comprou o Ministério da Justiça, a Suprema Corte, o Tribunal de Recursos e o Tribunal Municipal de Phnom Penh e estava construindo edifícios na periferia. ¿O governo vendeu escolas, um hospital e, agora, um lago¿, disse Kek Galabru, que lidera o Licadho. ¿Um dia, vão vender o Mekong e toda a Phnom Penh.¿

O campo de Cheung Ek foi o principal local de execução dos prisioneiros do centro de Tuol Sleng, em Phnom Penh, a 10 quilômetros daqui. O contrato com a japonesa JC Royal Co. tem duração de 30 anos e o aluguel inicial é de US$ 15 mil por ano, com aumentos graduais. A empresa espera faturar US$ 18 mil por mês com a cobrança de entradas. Os lucros devem ir para um fundo que tem 50% de participação dos funcionários do governo cambojano. A empresa concordou em limpar e organizar o local. Alguns temem que isso tire do campo a crueza que lhe dá o ar assombrado.

O vice-administrador do memorial, Ros Sophea Ravi, disse que antes mesmo de a empresa japonesa aumentar o ingresso de US$ 0,50 para US$ 2, os fantasmas pareciam ter desaparecido. As crianças disseram que seus pais começaram a deixá-las sair de casa à noite, por se sentirem menos ameaçados pelas almas errantes dos campos da morte. O zelador Svay Phreung, de 70 anos, disse que os fantasmas dos mortos aqui ¿foram para outra vida¿ e o mundo espiritual ficou mais silencioso, submetendo-se ao controle do anjo da guarda local, que construiu seu lar aqui muito antes do Khmer Vermelho. Indagado se os espíritos locais conseguiram salvar algumas das vítimas, ele respondeu: ¿Como poderiam ajudar? O Khmer Vermelho proibiu a religião.¿