Título: Peretz pode revolucionar a política de Israel
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2005, Nacional, p. A18

No Oriente Médio, a posição mais sensata é o pessimismo. Ninguém jamais perdeu dinheiro apostando que israelenses e palestinos continuariam se enfrentando em vez de fazerem a paz. O dinheiro ¿esperto¿ diz que isso continua valendo, que o progresso é impossível, que há obstáculos demais no caminho. Mas os últimos dias trouxeram um otimismo quase irresistível. Condoleezza Rice anunciou na terça-feira um acordo que abrirá as fronteiras de Gaza, permitindo que os palestinos transitem com maior liberdade para o Egito ¿ e também para a Cisjordânia, em comboios de ônibus através de Israel.

Nesta semana que começa, Gaza já não será ¿a maior prisão na Terra¿, bloqueada por todos os lados. Pela primeira vez em sua história, os palestinos terão o controle de uma fronteira. Dois meses depois da retirada de Israel da área ¿ que incluiu o desmantelamento dos assentamentos judaicos ¿, os palestinos poderão exportar seus produtos, a começar pelos tomates e pimentas que temiam que fossem deixados apodrecer se Gaza permanecesse fechada.

Isso é bom para a economia palestina, mas tem um significado ainda maior. Pela primeira vez, a administração Bush se envolve nas negociações detalhadas e minuciosas de que se faz a diplomacia no Oriente Médio. Condoleezza permaneceu uma noite extra em Jerusalém, viajando entre os dois lados, refinando pessoalmente alterações em um esboço de acordo num laptop em seu quarto de hotel. Até agora, a equipe de Bush se mantinha ao largo de um envolvimento profundo na questão, vendo nela a areia movediça que engoliu boa parte da presidência de Bill Clinton. O fato de Condoleezza se envolver no processo é uma virada. Se ela for bem sucedida, isso poderá dar-lhe o gosto de fazer mais.

Em segundo lugar, há pontos promissores nos detalhes desse acordo. Israel queria uma supervisão direta da travessia Gaza-Egito ¿ para se assegurar de que nenhuma arma ou combatente entraria por ela ¿, mas não conseguiu. O posto será fiscalizado, em vez disso, por forças européias sob o comando de um general italiano. Isso poderá se tornar um precedente importante.

Até agora Israel não confiava em ninguém além de seus próprios soldados (ou, talvez, dos americanos) para proteger sua segurança. Se agora o país estiver preparado para estender essa confiança à Europa, e se o novo arranjo funcionar, a abordagem poderá ser repetida num futuro acordo de paz.

Entretanto, não é essa a causa principal do atual e pouco familiar surto de otimismo. Essa honra cabe a um homem que, em menos de uma semana, revitalizou o campo da paz israelense. Seu nome é Amir Peretz, um líder sindical nascido no Marrocos que dedicou a vida a combater a pobreza ¿ e, na semana passada, contrariou todas as pesquisas de opinião e os sabichões do país tornando-se líder do Partido Trabalhista de Israel.

As pessoas já estão falando de uma revolução na política israelense, uma nova ¿Peretztroika¿, segundo o veterano ativista pela paz Uri Avnery (que observou também que a palavra hebraica ¿peretz¿ pode ser lida como ¿inovação¿). A combalida esquerda israelense está saudando a chegada do novo líder como a melhor notícia desde o colapso do processo de paz de Camp David, há cinco anos.

Por que todo esse otimismo? Começa pela posição de Peretz na questão central, o conflito com os palestinos. Por duas décadas ¿ muito antes de virar moda ¿, ele defendeu um Estado palestino. Agora, pede o fim do unilateralismo de Ariel Sharon e uma nova tentativa de paz negociada, tratando diretamente com os palestinos. Ele ousa falar de uma volta do ¿caminho de Oslo¿, feito corajoso num país onde os arquitetos do acordo de 1993 são rotineiramente tratados como ¿criminosos de Oslo¿. Há um significado político imediato nisso, assinalando uma clara ruptura com o líder trabalhista derrotado, Shimon Peres ¿ a grande figura que já se movia nos círculos governantes de Israel antes mesmo de Peretz nascer, em 1952. Enquanto Peres estava pronto a permitir que os trabalhistas servissem de suporte ao Likud numa coalizão nacional, quase sem questionar a atitude unilateralista de Sharon, Peretz resolveu sair disso. Quinta-feira, sua ameaça de abandonar a coalizão forçou Sharon a concordar em antecipar as eleições de novembro para fevereiro ou março.

Mas há mais do que simples cálculo eleitoral na posição de Peretz. Em seu discurso aos manifestantes que se reuniram no dia 12 para marcar o 10.º aniversário do assassinato de Yitzhak Rabin, Peretz pediu um ¿mapa da estrada moral, cuja estrela guia seja o respeito à dignidade humana¿, argumentando que o domínio contínuo de Israel sobre os palestinos estava cobrando um preço moral dos próprios israelenses.

¿Um mapa da estrada moral é encerrar a ocupação e assinar um acordo permanente¿, disse ele, antes de invocar Martin Luther King para declarar que ele também teve um sonho ¿ de que crianças palestinas e israelenses um dia ¿brincariam juntas e construiriam um futuro comum¿. Políticos israelenses já falaram assim antes, é claro. Em 2002, em outra vitória inesperada, o moderado Amram Mitzna se tornou líder trabalhista e entusiasmou os defensores da paz ¿ mas depois foi varrido pela vitória esmagadora de Sharon. Desta vez, contudo, há uma diferença crucial.

Peretz pertence ao que costumava ser conhecido como o ¿Segundo Israel¿, os judeus com raízes no mundo árabe ou muçulmano ¿ na gíria de hoje, mizrachim. Cinqüenta anos depois de sua chegada ao país, eles são desproporcionalmente pobres, vivendo com freqüência nas chamadas cidades em desenvolvimento ¿ e muitos abrigam um grande ressentimento com a condescendência e a discriminação dosadas para eles pelos então governantes do Estado, em sua maioria judeus europeus, asquenazes, do Partido Trabalhista.

O Likud explorou esse ressentimento em 1977, quando finalmente tirou o poder dos trabalhistas, e se apoiou neles desde então. O resultado tem sido um estranho paradoxo. Em Israel, o partido de esquerda, o Trabalhista, recebeu os votos das elites educadas e bem de vida, enquanto os pobres e necessitados votaram no partido de direita, o Likud. Nesse processo, falar em ¿paz¿ acabou passando a sensação de que se tratava de proteger os asquenazes bem de vida de Tel-Aviv ¿ não o mizrachi que trabalha duro em Sderot.

Peretz inverte essa lógica. Ele próprio é um homem da classe trabalhadora de Sderot, capaz de falar aos milhões há tanto perdidos pelos trabalhistas. Ele não é um símbolo, mas um autêntico líder de massa, que lutou duro pelos direitos e a igualdade dos trabalhadores e acabou chegando à direção da Histradut, a central sindical de Israel. (Seu equivalente mais próximo no cenário mundial seria o presidente brasileiro Lula).

Tudo isso areja a política israelense, reabrindo uma divisão esquerda-direita que tinha sido fechada no período de consenso pegajoso pós-Camp David. De repente, Peretz apresenta uma alternativa clara à economia neoliberal, thatcherista, seguida por Sharon ¿ que cobrou um preço social desesperador, jogando quantidades imensas de israelenses na pobreza. Ao mesmo tempo, propõe uma escolha radical entre ele e Sharon sobre o conflito com os palestinos: um acordo negociado ou mais da mesma coisa.

E Peretz liga as duas coisas. Argumenta que os gastos com defesa e ocupação drenaram dinheiro demais por tempo demais. Ele quer que o dinheiro atualmente gasto em assentamentos vá para os pobres de Israel: para ele, a segurança econômica faz parte da segurança nacional. Terá sucesso? Ele não é um soldado, num país que tendeu a escolher generais como líderes. Ele enfrenta, em Sharon, um mestre estrategista que colonizou o centro e se aferrou a ele. As chances estão contra Peretz. Mas ele já desafiou as chances anteriormente ¿ e todos os que anseiam pela paz no Oriente Médio deveriam rezar para ele desafiá-las de novo.