Título: `Estamos sobre uma camada de gelo fino¿
Autor: Vera Rosa, Sérgio Gobetti
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2005, Nacional, p. A12

Mercadante diz que crise pode contaminar a economia e critica os setores da oposição que torcem pelo ¿quanto pior, melhor¿

BRASÍLIA - O líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP), abrandou as críticas à ortodoxia da equipe econômica e passou a semana tentando apagar o fogo provocado pela chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que bombardeou o ajuste fiscal de longo prazo e atingiu em cheio o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Preocupado com o impacto do furacão político na economia, ele deixou de lado a retórica mais incisiva contra o excessivo rigor da meta de inflação e defendeu a política praticada por Palocci. ¿Estamos sobre uma camada de gelo fino¿, justifica. ¿A crise política pode contaminar, sim, a economia.¿ Aos 51 anos, pré-candidato do PT a governador de São Paulo, Mercadante nega que esteja de olho na cadeira de Palocci. Atribui a especulação às más línguas. ¿Essa é, seguramente, uma análise dos meus adversários¿, observa. Mas, questionado se prefere ser candidato ao Palácio dos Bandeirantes ou ministro, ele deixa escapar um ¿tem coisas que a gente não escolhe¿ para logo em seguida voltar a ser advogado de Palocci. ¿Eu luto e vou lutar para que Palocci continue ministro da Fazenda¿, insiste.

Mercadante diz que o desafio do Planalto é encontrar um ¿ponto de equilíbrio¿ entre as posições divergentes de Dilma e Palocci porque o governo anda com as duas pernas. ¿O problema é uma não trombar com a outra¿,constata. Mesmo assim, admite que o esforço fiscal começa a colocar ¿sob tensão¿ o setor de infra-estrutura e áreas sociais estratégicas.

Num gabinete repleto de amuletos para dar proteção, e um punhado de sal grosso em cima da mesa de trabalho, o líder do governo também defende o PT dos ataques tucanos. Sem almoço,entre uma xícara e outra de chá preto adoçado com mel, Mercadante recebeu o Estado na tarde de sexta-feira para a seguinte entrevista:

A chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, comprou uma briga com o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, ao criticar a proposta de ajuste fiscal de longo prazo, classificando-a de ¿rudimentar¿. Disse que não adianta o País apenas fazer superávit primário se não diminuir os juros. Quem tem razão?

Acho que todos concordam que o Brasil precisa reduzir a taxa de juros. Na medida em que a inflação que nós herdamos, de 17,5%, atinge 5,5% este ano ¿ o terceiro melhor resultado do pós-guerra ¿, você está criando uma condição fundamental para que os juros possam cair sustentadamente. Agora, para que os juros possam atingir os níveis dos padrões internacionais, nós temos que reduzir a dívida pública. Por isso, o superávit primário é indispensável para dar continuidade à queda dos juros e à possibilidade de redução da carga tributária.

Mas a taxa de juros praticada está impedindo que a dívida pública, neste momento, continue caindo, apesar dos superávits...

A dívida pública federal era de 28,1% do PIB em 1995 e chegou a 56,5% em 2002. Caiu hoje para 51,3%. Então, está havendo um desendividamento do Estado brasileiro e isso permite que os juros caiam sustentadamente. É evidente que os juros altos prejudicam o esforço fiscal. Essa é a armadilha de que o País está prisioneiro há mais de uma década. Os dois constrangimentos para o crescimento econômico são a taxa de juros, que continua muito alta, e a carga tributária elevada. Mas a experiência internacional mostra que o esforço fiscal vale a pena, porque o ganho que se tem na taxa de juros cria, em seguida, um círculo virtuoso: você recupera a capacidade de investimento, dá um choque de crédito e consegue arrancar para o crescimento sustentado.

Mas, afinal, quem tem razão?

Existe um debate histórico entre quem está na área da Fazenda ¿ responsável por manter a estabilidade, buscando reduzir o endividamento para baixar os juros e a carga tributária ¿ e os outros ministros, que precisam de investimentos em estradas, energia, educação, saúde... O desafio é encontrar o ponto de equilíbrio, porque o governo anda com essas duas pernas. O problema é uma não trombar com a outra. O esforço fiscal começa a colocar sob tensão o setor de infra-estrutura, de investimentos, e algumas áreas sociais estratégicas do País.

O sr. concorda com a ministra Dilma quando ela diz que não é adequado continuar elevando o superávit primário e que, com juros altos, isso equivale a ¿enxugar gelo¿?

Comparando com a trajetória histórica, verificamos que superávit de 6,3% do PIB é um sacrifício econômico. Isso gera um tensionamento muito difícil no Congresso e na relação com os governadores. Foi apressado apresentar a proposta de ajuste fiscal de longo prazo sem amplo debate suprapartidário, sobretudo às vésperas de ano eleitoral.

Então Dilma tem razão?

Cada um tem uma parte da razão...

Ah, senador... O sr. está muito em cima do muro....

Não, não. O problema é construir uma síntese dessa disputa, de quem tem responsabilidades distintas. Quem tem de arbitrar isso é o presidente Lula. E o fará. É a partir desse consenso que vamos construir um caminho consistente. O que não está em discussão, sendo ou não ano eleitoral, é o compromisso com a austeridade fiscal e com a estabilidade. E deixa eu tomar mais um chazinho com mel aqui, porque vocês ficam só com esse canhão em cima de mim (risos).

O sr. ainda não respondeu se acha que a política fiscal do governo é de ¿enxugar gelo¿...

Continue perguntando que eu posso continuar respondendo coisas substantivas e fundamentais.

Então o debate iniciado pela ministra Dilma não é substantivo nem fundamental?

O debate substantivo é esse que nós estamos fazendo e vai continuar. Onde aumentou o gasto no Brasil, de fato? Nas políticas sociais, especialmente no Bolsa-Família. É evidente que este País precisa administrar e reduzir o gasto de custeio e melhorar a gestão do Estado para pôr mais recursos no investimento em infra-estrutura. Sem esse investimento, não teremos crescimento acelerado no futuro.

Até há pouco tempo o sr. fazia várias críticas à ortodoxia da política econômica e ao rigor das metas de inflação. Hoje, o sr. mais parece um advogado do ministro Palocci. O que o fez mudar?

Eu questiono qual é a meta de inflação mais adequada, mas acho um avanço esse regime de metas. Defendo o superávit primário, mas podemos discutir qual é o tamanho dele e como administrar esses dois desafios. O rumo da política econômica é esse. Está correto.

Há quem diga que o sr. adotou discurso cauteloso porque está de olho na cadeira do ministro da Fazenda...

Essa é, seguramente, uma análise dos meus adversários. O ministro Palocci é o melhor nome para administrar a política econômica nesta crise e no ano eleitoral, em que as pressões aumentam. Temos de investigar o que quer que seja sem contaminar a economia. É só olhar para momentos do passado, de turbulências e ataques especulativos, para ver que temos de ser muito responsáveis na condução da política econômica.

O sr. é pré-candidato ao governo de São Paulo e, provavelmente, terá de disputar prévia com a ex-prefeita Marta Suplicy. Se tiver de escolher entre a candidatura e o Ministério da Fazenda, qual a sua opção?

Tem coisas que não é a gente que escolhe. Você é escolhido ou não. Em relação à disputa de São Paulo, se o partido e a militância acharem que meu nome ajuda a vencer a eleição, estarei à disposição. Vou trabalhar para que a gente construa um pacto de unidade, especialmente porque o PT atravessa uma fase difícil. Agora, eu luto e vou lutar para que Palocci continue ministro da Fazenda.

Mas todos sabem que, antes de Palocci ser escolhido, o seu nome chegou a ser cogitado para a Fazenda. É razoável, agora, supor que o sr. possa ser uma alternativa, não?

Olha, eu acho que o ministro fica. Ele tem a confiança do presidente, fez um grande trabalho e tem o meu apoio como senador, militante do PT e companheiro.

O sr. não chegou a ser sondado nos últimos dias?

Absolutamente. O presidente jamais faria isso. Ele apóia o ministro Palocci e estamos trabalhando para superar essa crise.

O governo teme que a situação política do ministro provoque turbulência na economia?

Estamos sobre uma camada de gelo fino. A crise política pode contaminar, sim, a economia. Andar por esse caminho é brincar de pula-pula em camada de gelo fino. A oposição está dividida nessa questão. Acho que o setor mais representativo da oposição tem responsabilidade pública e sabe que preservar a estabilidade da economia é uma coisa importante para o Brasil. Mas há um setor minoritário que tem uma política do quanto pior, melhor.

O sr. se refere às últimas críticas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à política econômica?

Não posso concordar com o ex-presidente quando ele diz que o superávit primário é para impressionar o mercado. Não acho que quem governou o Brasil e não teve a responsabilidade fiscal na gestão da dívida pública deva tratar o problema do superávit dessa forma. Isso não contribui para o debate. Ele disse também que o governo está escondendo a evolução da crise fiscal. É só olhar os indicadores e verificar que nós estamos enfrentando a crise fiscal. E a Super Receita era mais um instrumento nessa direção. Infelizmente, a oposição não apoiou...

Depois de tanto bombardeio, ainda é possível um diálogo com o PSDB?

Fernando Henrique tem todo o direito de criticar o governo do PT, e nós de não concordar. O que me incomoda é que quem governou oito anos, não conseguiu fazer o Brasil crescer aceleradamente, contribuiu para essa armadilha da dívida pública e juros altos e praticou uma política de âncora cambial tinha de ter mais humildade ao propor esse debate. Uma humildade que o Palocci teve, um reconhecimento que o Palocci teve do passado e que ele deveria ter em relação ao que está sendo feito.

O governo fez de tudo para que o ministro da Fazenda não fosse convocado para depor na CPI... Um ministro não tem de dar explicações?

Ninguém tem de ser poupado porque é ministro nem perseguido porque é ministro. Em 2 anos e 10 meses, todos os ministros foram convidados, vieram espontaneamente, não houve necessidade de convocação.

E o ministro Palocci comparecerá à CPI dos Bingos?

Esse é um tema que vamos discutir no momento oportuno.