Título: A guerrilha de Dirceu para salvar o próprio mandato
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2005, Nacional, p. A6

Depois de ganhar sobrevida de um mês com ações no Congresso e no Supremo, deputado pede ajuda aos prefeitos do PT

No corpo-a-corpo para escapar da guilhotina que ameaça seus direitos políticos, o deputado José Dirceu trava um combate difícil, estranho e prolongado. Dirceu passa a maior parte do tempo cansado, com expressão de quem dormiu menos do que deveria e mais do que pretendia. Relaxa pouco, alimenta-se mal, quando não está no gabinete é porque tomou o caminho do aeroporto. Na sexta-feira, Dirceu reuniu-se na hora do almoço com 11 prefeitos do PT paulista. Foi um encontro de trabalho, com direito a refrigerante e salgadinhos. Terminada a reunião, cada prefeito foi para casa com o dever de procurar os parlamentares de sua região e pedir votos. José de Filippi, prefeito de Diadema, comprometeu-se a brigar por três votos. ¿Inclusive por gente do PT que está negando fogo¿, diz o prefeito. Elói Pietá, prefeito de Guarulhos, diz que vai procurar amigos que fez em Brasília quando era parlamentar. ¿Vou olhar a lista e examinar nome por nome. Vou lutar por cada voto que puder conseguir.¿ Elói e Dirceu têm uma amizade histórica, mas estiveram em campos opostos quando a crise explodiu. Elói queria que o partido apurasse toda denúncia e foi um dos primeiros a brigar pela destituição de José Genoino da presidência do PT. Dirceu era contra. Os dois se reaproximaram. ¿O Dirceu não merece ser cassado¿, diz Elói, que assume a argumentação do deputado: ¿Você não pode cassá-lo por motivos políticos. Precisa de razões concretas. E isso não apareceu.¿ O próprio Dirceu encerrou a semana com uma agenda de movimentos: uma visita ao Rio na quinta-feira, uma jornada em São Paulo na sexta, uma viagem a Belo Horizonte, ontem, e nova viagem ao Rio, hoje, para duas reuniões com dois grupos de parlamentares e, se fosse possível, um passeio pela praia em companhia da mulher, Maria Rita.

A caminho do avião que o levaria ao Rio, na quinta-feira passada, José Dirceu é saudado no Aeroporto de Brasília por dois cidadãos que lhe prestam solidariedade. Mas um senhor de terno, um pouco atrás na fila de embarque, olha para ele irritado, como se fosse um intruso. Na porta do avião, o comandante puxa conversa animado. ¿Um terço do País me quer, o outro não quer e os outros não têm opinião. Estou conseguindo polarizar a discussão sobre meu mandato. Não pensei que ia conseguir isso¿, diz. Esse mundo dividido ronda Dirceu 24 horas por dia. No fim da tarde, quando o avião pousa no Galeão, Dirceu é recebido por dois parlamentares aliados. Passa por cidadãos que arriscariam pedido de autógrafo, não fosse o caminhar apressado do deputado. É a turma a favor. Mas não falta um gaiato de camiseta, bermudão e chinelo, como saído de crônica de Nelson Rodrigues, para dizer baixinho a amigos: ¿É o mensalão, o mensalão...¿

No começo da noite, Dirceu estará no centro de um ato, organizado num auditório da Universidade Candido Mendes. É um encontro de amigos e aliados. São sindicalistas, velhos militantes da luta contra a ditadura, amigos do movimento estudantil. Todos fazem intervenções para defendê-lo. Dirceu estava cansado ao chegar ao evento. Falava baixo, sem empolgação, por palavras que parecem ser pronunciadas de modo mecânico. Animou-se aos poucos. O próprio deputado vai dizer, no discurso de encerramento, como se encontrasse uma velha namorada: ¿Estou com saudade de vocês.¿ Ele dirá ainda: ¿Minha vida não tem sentido sem o PT.¿ Mesmo nesse ambiente, num dos instantes iniciais do evento um publicitário infiltrou-se no auditório para gritar, antes de ser empurrado para fora: ¿Olha o caixa 2, o caixa 2.¿

Quando deixou a Casa Civil aos gritos de ¿Sai daí, Zé, sai daí¿, ouvidos por todo o País, ele estava só, abandonado e humilhado pela oratória devastadora de Roberto Jefferson. Antigos aliados e protegidos falavam que era preciso refundar o partido ¿ como se estivesse falando de encontrar um novo pai. ¿Esse foi o pior momento¿, diz Dirceu, que hoje ocupa um cargo de suplente no Diretório Nacional do PT. ¿Diziam que nem o PT estava comigo¿, diz.

Dirceu travou sete lutas no Supremo e sete no Congresso. Tecnicamente, teve vitórias parciais. Se deixasse a vida no Congresso seguir seu curso, com certeza há um mês teria perdido o mandato e neste momento estaria sentado com o escritor Fernando Morais fazendo um livro de memórias sobre seus 30 meses no governo Lula ¿ projeto já acertado entre os dois. Ganhou tempo, ao menos para procurar parlamentares. Conversou com dois terços da Câmara. Um desses diálogos foi com Alceni Guerra, como patrono dos injustiçados da política brasileira. Ministro de Fernando Collor, Alceni deixou o governo execrado, conseguindo provar muitos anos depois que nada havia contra ele. Quando foi atirado aos leões, Dirceu chefiava o Comitê Central de bisbilhotagem do PT, mas não disparou nenhum petardo personalizado na direção de Alceni. ¿Tivemos uma conversa muito agradável¿, conta Alceni, que não anuncia o voto mas não esconde a simpatia pela causa de Dirceu. ¿Ele é um guerrilheiro. Conhece o terreno onde pisa, avança de surpresa e já conseguiu respeito na Casa.¿

Na quarta-feira, um grupo de deputados se encontrou no cafezinho da Câmara para assistir ao depoimento do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, na Comissão de Assuntos Econômicos. Com a liberdade de quem está entre iguais, um parlamentar que votou pela cassação de Dirceu na Comissão de Constituição e Justiça recordou as denúncias sobre a prefeitura de Ribeirão Preto para dizer, em tom de amargura: ¿Uma coisa eu te garanto: o Zé Dirceu não fez nada do que esse aí fez e pode perder o mandato. Com o Palocci não vai acontecer nada. Quem manda neste país são os banqueiros e os grupos econômicos.¿ O próprio Dirceu festejou o depoimento de Palocci. ¿Se ele tivesse ido mal, eu estaria perdido¿, admite. Quando alguém pergunta a Dirceu como ele está, a resposta vem com ironia: ¿Estou bem. Bem mal¿, diz. Quando lhe perguntam o que acontecerá com seu mandato, ele explica: ¿O que vai decidir é a conjuntura.¿

Antes de Dirceu, a grande atração do ato público no Rio foi o ator José de Abreu, colega no curso de Direito da PUC de São Paulo, preso no Congresso de Ibiúna. ¿Eu era louco demais¿, admite o próprio Abreu, lembrando que incendiou mais de 12 carros. ¿Era fácil tocar fogo em fuscas¿, comenta. Aluno de Franco Montoro, o professor de Direito que uma década e meia depois seria governador de São Paulo, Abreu recorda a perplexidade do professor antes de reprová-lo num exame oral: ¿Ele não conseguia acreditar que eu assistia a suas aulas. Claro que fui reprovado.¿

No Rio, Dirceu teve uma conversa privada com o professor Candido Mendes, intelectual católico de grande prestígio, dentro e fora do País. Aliado de Lula e do PT, Candido Mendes se disse escandalizado com a decisão do Supremo que não aceitou aquele recurso onde os advogados de Dirceu pediam que a denúncia por quebra de decoro parlamentar fosse anulada porque o deputado era ministro naquela época. Dirceu comentou casos anteriores, lembrando que em 1982 o ministro Jair Soares tentou valer-se da condição de deputado para conseguir imunidade ¿ e foi derrotado. ¿O Supremo deu um golpe parlamentarista¿, disse o professor, alegando que apenas neste tipo de regime as duas categorias ¿ ministro e parlamentar ¿ se confundem. Candido Mendes sugeriu a Dirceu que a luta prosseguisse por outros caminhos. Um deles, explicou, seria convocar o Conselho da República, órgão de consulta da Presidência da Republica, do qual participam o vice-presidente, o presidente da Câmara, o presidente do Senado, os líderes das maiorias e minorias das duas Casas, o Ministro da Justiça e seis cidadãos indicados pelos Três Poderes. O Conselho não tem poder deliberativo, mas é autorizado, pela Constituição, a pronunciar-se sobre questões que dizem respeito às instituições. ¿Mencheviques não fazem história¿, animou-se Candido Mendes ao tomar o elevador com Dirceu, afiando a retórica para o discurso de abertura.