Título: As razões de ser do Cade
Autor: Onofre Carlos de Arruda Sampaio
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Conforme noticiado pela imprensa, em manifestações feitas durante a sabatina do economista Abrahan Sicsú, indicado para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), alguns membros da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado fizeram críticas ao órgão, acusando seus integrantes de agirem contra o interesse da sociedade, de não procurarem os senadores dos Estados onde as empresas estão localizadas - certamente para ouvirem seus desejos - e de não terem visão política, chegando um deles a dizer que "não adianta nada ser Ph.D. e não conhecer a sociedade". Infelizmente para os cidadãos brasileiros, considerações dessa espécie, proclamadas em alto e bom som e divulgadas pela imprensa e pela TV Senado, não são novidade nem há esperança de que venham a minguar em futuro próximo. Mas para que não se instaure a confusão, por falta de informação, é preciso resgatar as origens e as razões de ser do Cade.

Foi a percepção de que muitas decisões administrativas eram tomadas ao arrepio do interesse público - fruto ora do desconhecimento técnico dos que as produziam, ora do mais puro tráfico de influência política - o que levou os legisladores norte-americanos, em meados do século 19, a criar o modelo de agência independente, que veio a se constituir em exemplo para a formatação legal dos órgãos de defesa da concorrência e das agências reguladoras independentes da maioria dos países do Ocidente. Portanto, são pressupostos dessas instituições que seus integrantes tenham conhecimento técnico específico da área em que irão atuar e que ajam de forma politicamente neutra.

Ao que se vê, há uma contradição absoluta entre o que certos senadores desejam do Cade e as razões por que ele foi criado e existe. Vale lembrar que o Cade não tem nem mesmo, e não se justificaria que tivesse, função regulatória, pois a sua atribuição é apenas e tão-somente a de prevenir e reprimir os abusos de poder econômico que visem à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. A prevenção se dá pelo exame de certos atos e contratos para verificar se podem limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, atestando o Cade a sua validade jurídica, quando for o caso, ou determinando os reparos e até mesmo a sua desconstituição, se necessário.Também cabe ao Cade receber da Secretaria de Direito Econômico e julgar, com fundamento estrito nas disposições legais, os autos de processos administrativos por ela instaurados para apuração de atos que possam constituir infração à ordem econômica, isto é, que possam limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre-iniciativa; dominar mercado relevante de bens e serviços; aumentar arbitrariamente os lucros ou exercer abusivamente posição dominante.

Portanto, acha-se o Cade legalmente jungido a agir e decidir de conformidade com os preceitos legais vigentes, mantendo-se absolutamente neutro e distante dos interesses políticos que possam ter ou representar alguns dos nossos nobres senadores, sejam tais interesses, do ponto de vista político, mais ou menos justificáveis. Da mesma forma, não é dada aos conselheiros do Cade atribuição de perscrutar qual seria a decisão que mais agradaria a esta ou àquela parcela da sociedade brasileira, esteja ela localizada neste ou naquele Estado da Federação, pelo simples fato de que a defesa da concorrência não se dá pelos parâmetros da geografia política, mas visando o interesse da população brasileira como um todo - e a forma como se afere e se atende a tal interesse tem natureza técnica, fundamentada na ciência econômica e jurídica, como determina a lei, por meio dos princípios que expressamente a integram.

Assim sendo, é importante que a sociedade tenha plena consciência de que o Cade foi criado para que possam ser produzidas decisões de caráter técnico concorrencial, desvinculadas de quaisquer influências políticas, que viciariam e acabariam com a sua razão de ser. Vale lembrar que, agindo como vem fazendo, os conselheiros do Cade estão cumprindo exatamente o que a Assembléia Constituinte e o Congresso lhes determinaram, via Constituição federal e Lei.8.884/94. Felizmente, a maioria dos senadores tem plena consciência da importância da neutralidade política do Cade e das agências reguladoras como instrumento de aplicação justa e isonômica da lei, o que outorga a todos os que vivem e investem suas poupanças no nosso país um mínimo de segurança jurídica, sem o que não haveria Estado de Direito, mas, ao contrário, teríamos a sua destruição por uma indesejada e indesejável situação em que prevaleceriam imprevisíveis conveniências e oportunidades, nem sempre passíveis de serem devidamente explicadas.

Finalmente, cumpre referir que o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional projeto de lei visando a alterar a Lei de Defesa da Concorrência com vista a aproveitar a experiência acumulada nestes mais de dez anos de sua aplicação, o que é louvável. Porém, em razão das manifestações acima registradas, faz-se necessária uma estreita vigilância da sociedade e dos congressistas, que bem compreendem a missão do Cade, para que a tramitação do projeto se dê de forma a que se possa aprimorá-lo, mas sem dar oportunidade para a introdução de alterações injustificadas que venham a macular a intenção e oportunidade de revisão da lei, que se quer melhorar. A aceitação das críticas acima referidas implicaria eliminar a exigência de fundamentação técnica e neutralidade política que deve pautar as decisões do Cade, com isso deitando por terra as razões primeiras e fundamentais da sua criação e da sua existência, cuja necessidade não há como não reconhecer.