Título: Desajeitado e insensato
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/11/2005, Notas e Informações, p. A3

Alguém pode imaginar a diplomacia brasileira tentando convencer outros governos, durante uma negociação comercial, a adotar programas de renda mínima e direitos de aposentadoria para seus cidadãos? O senador petista Eduardo Suplicy pode. Mas ele não se limita a imaginar. Ele inclui essa nobre missão entre os objetivos da política brasileira de comércio exterior. Por aí se pode calcular o grau de insensatez do Projeto de Lei 4.291, de 2004, destinado a fixar "os objetivos, métodos e modalidades da participação do governo brasileiro em negociações comerciais".

Se essa amostra parece espantosa a qualquer cidadão com um nível razoável de bom senso, ainda mais espantosa é a tramitação desse projeto, apresentado em 2003 pelo senador Suplicy. Passou pelo Senado, chegou à Câmara, com pequenos retoques, e poderá converter-se em lei. Se isso ocorrer, será um trambolho para qualquer negociador comercial também dotado de uma boa dose de bom senso.

Esse projeto foi evidentemente inspirado ao senador Suplicy pelos defensores do neoterceiro-mundismo imperante, a partir de 2003, no Itamaraty e na assessoria internacional do Palácio do Planalto. O texto é formado por duas categorias de proposições: as meramente redundantes, porque se referem a objetivos normais da política de comércio exterior; e as aberrantes. O conjunto é um despropósito.

Não tem sentido fazer uma lei para subordinar as negociações comerciais a objetivos como a conquista de mercados para bens e serviços brasileiros, a ampliação dos setores produtivos e o aumento da participação de produtos com maior valor agregado na pauta de exportações. Talvez o Conselheiro Acácio pudesse aplicar-se a um trabalho desse tipo, mas os brasileiros têm o direito de cobrar algo melhor de seus deputados e senadores.

Se ficasse nisso, o projeto seria apenas uma inutilidade. Mas o texto não é só acaciano. É também um trambolho ideológico. Por exemplo: os negociadores deverão discutir os chamados temas sistêmicos, como serviços, investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais, somente nos foros multilaterais, "preservada a possibilidade de aprofundamento do Mercosul e de outros mecanismos de integração econômica entre os países em desenvolvimento, especialmente do continente africano".

Tudo isso é uma evidente bobagem. Os negociadores brasileiros têm procurado reservar esses assuntos, de fato, para os foros multilaterais da OMC e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi). Mas isso é uma questão de conveniência, não de princípios. Se a diplomacia brasileira, fundada em motivos ponderáveis, julgar conveniente negociar alguns desses temas (compras governamentais ou investimentos, por exemplo) no âmbito da Alca ou dos entendimentos entre Mercosul e União Européia, deve ter liberdade para agir.

Igualmente insana é a exceção aberta somente para negociações com países em desenvolvimento. Mais aberrante, ainda, é a condição especial atribuída aos africanos. Não há justificativa racional e pragmática para isso.

O texto proíbe, nas negociações comerciais, compromissos relativos a assuntos trabalhistas, ambientais e na área financeira em geral, mas novamente se ressalvam os acordos com países em desenvolvimento. Vale novamente o argumento do pragmatismo e da conveniência, inacessível a quem usa antolhos ideológicos.

O texto contém outras tolices de calibre variável. Mas o projeto não é apenas uma soma de redundâncias e aberrações. Há bons argumentos para considerá-lo inconstitucional. Pelo artigo 84 da Constituição, compete privativamente ao presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, "sujeitos a referendo do Congresso Nacional". O projeto estabelece condições para esse referendo, indicando objetivos e limitações para os acordos. Na prática, o projeto é uma tentativa de usurpação de atribuições exclusivas do Executivo. Desajeitadamente, como noutras ocasiões, o senador tenta com esse projeto copiar a legislação norte-americana.