Título: Brecha na lei tira R$ 9 bi da saúde
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/11/2005, Vida&, p. A10

Na semana passada, a Câmara dos Deputados impediu que o governo Lula tirasse R$ 1,2 bilhão do Ministério da Saúde para pagar o programa Fome Zero. A transferência estava na medida provisória 261, que acabou aprovada sem esse ponto polêmico. Embora a saúde pública tenha saído intacta, a queda-de-braço entre presidente e deputados trouxe à tona a recorrente prática de gastar em outras áreas o dinheiro da saúde. Desde 2000, a Constituição estabelece o mínimo que cada esfera do poder público deve investir em saúde (leia no quadro ao lado). Em 2004, descumpriram a lei 12% dos municípios e 4 das 27 unidades da federação. O governo federal, segundo o Tribunal de Contas da União, cumpriu o limite mínimo.

Esses dados aparentemente positivos mostram a superfície da situação. Indo mais a fundo, ao contrário, constata-se que uma parte dos governantes não cumpre a lei. E por dois motivos.

Em primeiro lugar, nem todos informam seus gastos em saúde ao governo federal. Até hoje, 22% dos municípios não enviaram seus relatórios do ano passado. No caso dos Estados, são dez os que não deram satisfação.

Em segundo lugar, parte dos governantes atinge o mínimo fixado pela Constituição à custa de maquiagens, incluindo programas sociais, obras de saneamento e pagamento de aposentadorias da respectiva Secretaria da Saúde como se fossem investimentos em saúde pública.

No Rio, o governo contabiliza os programas assistenciais Cheque Cidadão e Restaurante Popular e até o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. O Rio Grande do Sul inclui os servidores inativos nas contas da saúde.

O mau exemplo vem de cima. Assim como procurou tirar verba da Saúde para pagar o Fome Zero, o governo federal buscou incluir nas contas os hospitais das Forças Armadas - embora públicos, eles atendem só os militares, e não a população em geral. Não teve sucesso. Mas da mesma fonte conseguiu levar R$ 186 milhões para o Ministério das Cidades, para tratar o esgoto de grandes cidades.

Só neste ano, por causa desses subterfúgios, o poder público deixou de gastar R$ 9 bilhões em hospitais, equipamentos, médicos, remédios e exames em todo o País, de acordo com a última estimativa do Ministério da Saúde. Os que mais deixaram de investir foram os Estados (R$ 4 bilhões).

PROJETO PARADO

Os gastos em si não são irregulares. O problema é considerá-los no cálculo do mínimo exigido pela Constituição. Os governantes que incluem tudo o que podem sob o guarda-chuva da saúde não sofrem nenhum tipo de punição.

A situação é essa porque há dois anos se arrasta na Câmara o projeto da lei que regulamentaria a emenda constitucional 29, de 2000. É a EC 29 que fixa o mínimo que União, Estados e municípios devem aplicar em saúde. Mas de forma genérica. Não diz o que é ou não saúde pública nem as sanções para quem descumpre a lei. Isso está detalhado no projeto, que aguarda a votação em plenário antes de ir para o Senado.

Sem regulamentação, cada um interpreta a Constituição à sua maneira. O Rio considera o Restaurante Popular e a Despoluição da Guanabara sob o argumento de que a carência alimentar e a contaminação da água trazem problemas à saúde. O Espírito Santo conseguiu na Justiça mudar a forma como seus impostos são usados nas contas, de maneira a diminuir o valor arrecadado - com a arrecadação teoricamente menor (na prática, é a mesma), o valor a ser investido em saúde cai na mesma proporção.

Se a regulamentação já tivesse sido aprovada, muitos governantes poderiam ser processados por crime de responsabilidade. Estados e municípios deixariam de receber transferências voluntárias de recursos da União e poderiam até sofrer intervenção federal.

CPI DA SAÚDE

Dos 17 Estados que enviaram seus balanços de 2004 ao Ministério da Saúde, 13 ficaram acima dos 12% mínimos da Constituição. Desses, 7 ficaram bem próximos desse piso - o que leva à suspeita de que tenham "mascarado" suas contas com gastos de outras áreas.

O julgamento cabe aos Tribunais de Contas (da União, dos Estados e dos municípios), que continuarão com suas interpretações particulares do texto genérico da Constituição até que a regulamentação da EC 29 seja finalmente aprovada.

"O Ministério da Saúde está empenhado na aprovação da lei, mas a área econômica do governo não", afirma o deputado Rafael Guerra (PSDB-MG), presidente da Frente Parlamentar da Saúde. "Porém, acredito que o governo não poderá mais impedir que o projeto seja colocado em votação. No ano que vem há eleição presidencial. O governo não está em condições de tomar medidas contra a sociedade."

Há duas semanas, a Comissão de Finanças da Câmara aprovou a criação de uma CPI para investigar o cumprimento da EC 29 em todos os níveis. Para a CPI ser aberta, o projeto precisa ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo plenário.