Título: A vertigem de querer fazer dinheiro e suas seqüelas
Autor: Leda Paulani
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2005, Aliás, p. J3

Está na origem do capitalismo a troca de farpas entre Dilma e Palocci

A mais recente e vibrante contenda produzida pela política brasileira coloca, de um lado, o ministro da Fazenda, de outro a ministra da Casa Civil. Mais do que especular sobre o que vai se passando nos bastidores da política nacional, com sua teia de brigas pelo poder e denúncias de corrupção, o que importa, do ponto de vista do País, é tentar compreender o que está por trás deles. Quando estuda os ciclos de reprodução, no início do Livro II de O Capital, diz Marx: ¿No ciclo global do capital, o processo de produção aparece apenas como elo inevitável, como mal necessário, tendo em vista fazer dinheiro. Todas as nações de produção capitalista são, por isso, periodicamente assaltadas pela vertigem de querer fazer dinheiro, sem a mediação do processo de produção¿.

Ao que tudo indica, a partir de meados dos anos 70, foi o capitalismo como um todo que foi tomado por essa febre. Junto com a tão celebrada globalização nasceu também um regime de acumulação que se desenvolve sob os imperativos da valorização financeira. Não é por acaso que este é um tempo de mercados cada vez mais securitizados e onde os títulos de dívida pública assumem papel cada vez mais determinante.

Mas esse capitalismo rentista, com seu conjunto de práticas discriminatórias e seu permanente e concreto açambarcamento da riqueza social por uma aristocracia capitalista privilegiada e bem postada junto ao e no Estado, é esquizofrenicamente regido pelo discurso neoliberal, que apresenta o mercado como o grande demiurgo do sucesso capitalista. A associação cada vez mais forte entre poder e dinheiro, que está na raiz desse sucesso, aparece, assim, travestida em resultado das virtudes do mercado e de sua suposta natureza meritocrática, forjada pela concorrência.

O aprofundamento do movimento de centralização dos capitais, que foi ocorrendo em paralelo a esse processo, com a constituição de gigantescos grupos empresariais, que comandam planetariamente a quase totalidade dos setores vitais para a reprodução material da humanidade, fez nascer igualmente a suposição de que na aldeia global não havia mais lugar para os Estados Nacionais, como se esse processo ocorresse de forma idêntica em todos os lugares do planeta.

A fragilidade desse argumento decorre do esquecimento de que o personagem principal desta etapa do capitalismo é justamente o capital financeiro, ou aquilo que Marx chama de moneyed capital. Considerando que o sistema monetário internacional é hoje comandado por uma moeda puramente fiduciária, a existência de uma hierarquia monetária torna-se, nessas circunstâncias, uma necessidade lógica, e os Estados Nacionais da periferia do sistema capitalista são permanentemente assaltados pela vertigem de possuírem uma moeda forte, de que são exemplos gritantes as histórias recentes de vários países latino-americanos.

A sedução dessa miragem é tanto mais vigorosa quanto mais frágeis e submissas são as incipientes burguesias periféricas. Por que insistir num complicado projeto de desenvolvimento abrangente e soberano se a manutenção de seu domínio parece poder se dar de forma mais fácil, com a utilização rentista do Estado em benefício próprio, com a internacionalização garantida de seu padrão de vida e com a possibilidade ao alcance da mão de desterritorializar sua riqueza?

Sendo essa exatamente a situação do Brasil, não houve grande titubeio para, uma década e meia atrás, admitir não apenas a submissão do País aos ditames da globalização, mas, mais que isso, optar por entrar no bonde da história não prioritariamente pela via do comércio, mas fundamentalmente pela via de sua constituição como emergente plataforma de valorização financeira. Apesar dos discursos em contrário de um lendário presidente do Banco Central, foi essa a natureza da inserção externa de fato produzida ao longo dos anos 90.

Os resultados deletérios produzidos por esse caminho, com a enorme elevação do desemprego e o crescimento da violência e da barbárie nos grandes centros urbanos, particularmente após a crise do início de 1999, ensejaram uma reação popular que se manifestou no plano da representação democrática com a eleição de um partido e um presidente que pareciam em tudo destinados a contra-arrestar esse movimento de submissa inserção internacional. A despeito do ¿endireitamento¿ progressivo que vinha experimentando o Partido dos Trabalhadores, era ainda assim legítimo esperar, nos inícios do novo século, uma mudança de rota, por mínima que fosse.

Mas não foi o que se viu. Ao invés do resgate da perspectiva do desenvolvimento, resgate que passaria pelo controle dos fluxos de capital, pelo aumento do volume de reservas, pela redução dos juros, pelos conseqüentes investimentos em infra-estrutura, pela negociação das políticas de reajuste dos grandes monopólios privados de serviços de utilidade pública, pela efetivação de uma reforma que implantasse de vez a progressividade nos tributos que incidem sobre a riqueza, pela realização da reforma agrária, entre outras medidas, o governo ¿popular e democrático¿ guindado ao poder federal pelas eleições de 2002 optou por trilhar ainda mais decididamente o caminho já aberto.

Com a política de fortalecimento dos interesses rentistas como pano de fundo, tornou-se impossível conciliar esse governo com as aspirações populares que estiveram em sua origem, por melhores que sejam as intenções de quem ainda lá se encontra com esses propósitos. Por mais que se faça bolsa-família e se incentive a economia solidária, são gritantes as diferenças na alocação dos recursos do Estado entre esses pobres interesses e os interesses poderosos do rentismo.

O mais trágico em tudo isso é que uma eventual vitória da ministra na referida contenda poderá, na melhor das hipóteses, dourar um pouco a pílula, mas não será capaz de produzir uma virada efetiva no programa de governo. Ao não utilizar o enorme capital político que tinha de início, ao escolher esse caminho e se afundar ainda mais nele, o governo aumentou irresponsavelmente os custos de tirar o País da armadilha em que já se encontrava. Quem se beneficia com isso saberá fazer bom uso dessa circunstância, seja qual for o resultado da paroquial pendenga ora em curso.