Título: Internet com muitas redes regionais, sem centralização. É a visão da ONU
Autor: Otávio Dias
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/11/2005, Economia & Negócios, p. B16

Previsão da Cúpula sobre a Sociedade da Informação esquenta a disputa com os EUA sobre a gestão do sistema de computadores

TÚNIS - A internet, centralizada sob o comando de uma organização ¿quase independente¿ americana, tende a se regionalizar, com o surgimento de redes de países ou grupos de países, que se comunicarão entre si mais ou menos como ocorre com os diversos sistemas de telefonia do mundo hoje em dia. A previsão foi feita por Yoshio Utsumi, secretário-geral da União Internacional de Telecomunicação, órgão ligado à ONU, e da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, encerrada sexta-feira. ¿Isso já ocorre na China, onde domínios chineses estão sendo criados¿, disse Utsumi. A declaração é polêmica por causa do conflito entre os Estados Unidos e um grupo de países em desenvolvimento, entre eles o Brasil e a China, centrado justamente na questão de quem deve gerir a internet e, especificamente, controlar o registro de domínios (os sufixos .com e .br, por exemplo) e os endereços virtuais.

Após vários meses de disputa, os EUA acabaram vencendo. Na Cúpula de Túnis, ficou decidido que o registro de domínios e endereços de internet, entre outras funções fundamentais para o funcionamento da rede tal como a conhecemos hoje, continuarão a ser de responsabilidade do Icann, com sede na Califórnia.

O Icann é uma organização não-lucrativa e quase independente, que registra os domínios e os endereços de internet de todo o mundo, além de controlar os computadores centrais da rede.

Embora o governo dos EUA afirme não interferir nas decisões do órgão, diversos países fizeram uma tentativa de transferir a gestão da rede para uma organização internacional, multilateral e mais transparente, argumentando que a rede é hoje um fenômeno global.

Apesar de terem recebido o apoio da União Européia quase na última hora, a proposta desse grupo de países não foi aceita pelos EUA, que criou a internet nos fim dos anos 1960 e investiu grande quantidade de recursos para construí-la nas décadas seguintes.

No início da cúpula, foi anunciado um acordo segundo o qual o Icann mantém o registro de domínios e endereços e outras funções relativas à gestão da internet.

Em contrapartida, os EUA aceitaram a criação de um Fórum de Governança da Internet, que articulará políticas relativas a outras questões importantes, como combate ao crime virtual, defesa da privacidade, etc.

Ambos os lados cantaram vitória, mas os EUA mantiveram o controle, ainda que não direto e explícito, sobre a internet. Para Utsumi, no entanto, o atual acordo poderá ter vida curta. ¿Não sei se essa solução será a final porque a internet está mudando muito rapidamente e não sabemos como será a rede no futuro.¿

Ele levantou a possibilidade de a internet deixar de ser centralizada, no que diz respeito ao registro de domínios e endereços, e ser substituída por uma série de redes regionais que se comunicariam entre si. ¿Grande parte do tráfego de internet em um país ou região ocorre em sites daquele próprio país. Então é possível que surjam redes regionais, nos idiomas locais, que se liguem as outras como acontece hoje com os sistemas de telecomunicação regionais e internacional.¿

Na China, um dos países onde a internet cresce com maior rapidez, apesar do controle rígido imposto pelo governo, isso já começa a ocorrer, disse Utsumi.

Um dos argumentos dos EUA contra a internacionalização da gestão da internet foi justamente o de que cresceria a influência de países não-democráticos, como a China, sobre a rede.

Na queda-de-braço com os EUA, os países favoráveis à mudança ameaçaram criar uma rede paralela, caso sua reivindicação não fosse ouvida. Os EUA contra-atacaram dizendo que isso prejudicaria a internet e seus usuários.

O tema ameaçou dominar a cúpula, prejudicando a discussão de assuntos mais centrais para o encontro, cuja missão central era propor medidas para reduzir o fosso digital entre os países ricos e os pobres.

Mas Utsumi viu o fato com outros olhos: ¿Essa polêmica chamou a atenção de vocês, jornalistas, que vieram para cá cobrir o evento¿.

Ao fazer um balanço sobre os resultados do evento, ele disse que o maior feito da Cúpula de Túnis foi ter levado a maioria dos países do mundo a um consenso de que o investimento nas novas tecnologias digitais é essencial para o desenvolvimento sustentável.

¿Quando iniciamos, há sete anos, o longo caminho que termina hoje, muitos chefes de Estado ou de governo com quem me reunia achavam que discutir tecnologia da informação era algo muito técnico, que não lhes dizia respeito. Agora, todos concordam que esse é um tema fundamental e muitos estão firmemente engajados em definir estratégias nacionais.¿

PROCESSO

A Cúpula Mundial sobre a Sociedade de Informação teve um formato único entre as diversas conferências do tipo realizadas pela ONU. Teve uma primeira fase, há dois anos, que resultou em uma Declaração de Princípios e um Plano de Ação. E uma segunda fase neste ano, em que se buscou detalhar as propostas e dar passos para a implementação das propostas.

¿Chegamos ao fim de um processo, mas o desafio de reduzir o fosso digital está apenas começando¿, disse Utsumi, que continuará coordenando os esforços para incluir os países pobres e em desenvolvimento na era digital.

Segundo o secretário-geral, diversas agências da ONU trabalharão nos próximos anos para transformar em realidade as decisões tomadas em Túnis (2005) e Genebra (2003).

O trabalho será realizado juntamente com cerca de 2.500 parceiros já inscritos, além, é claro, de governos de todo o mundo.

¿Será um trabalho multilateral, descentralizado, de baixo para cima.¿

Utsumi prometeu convocar as primeiras reuniões dentro de poucas semanas. ¿Proponho a vocês que cobriram o evento que continuem acompanhando o processo porque haverá novidades¿, afirmou, com o misto de timidez e determinação típico dos japoneses.

Ao ser questionado sobre o que faria no caso de governos de países não realizarem sua parte na concretização das metas de Túnis, ele deu uma resposta algo surpreendente.

¿Não tenho uma vareta para castigar ninguém. Mas os países que não aproveitarem essa oportunidade ficarão para trás. E isso será uma estupidez muito grande.¿

Utsumi também criticou a ausência de líderes políticos dos países desenvolvidos no encontro de Túnis. ¿Admito que a participação de líderes do Ocidente foi limitada. Mas o entendimento deles também é limitado.¿

Detalhes dos dois documentos aprovados na semana passada na Tunísia, intitulados Compromisso de Túnis e Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação, estão no site www.itu.int/wsis.