Título: O Mercosul em marcha à ré?
Autor: Sergio Amaral
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

As declarações e os propósitos ambiciosos para avançar rapidamente no Mercosul não estão encontrando correspondência nos fatos. A despeito de o volume de comércio ter-se recuperado da crise da economia argentina, o que é um fato auspicioso, acumulam-se sinais inquietantes. A objeção frontal e pública do governo argentino à candidatura do Brasil ao Conselho de Segurança da ONU explicitou a fragilidade do diálogo político. A incerteza deliberada quanto à participação do presidente Kirchner em reuniões regionais evidencia um clima de fricções e ressentimentos, sejam eles justificados ou não. Aparentemente, os problemas não estão circunscritos aos dois sócios maiores. O estremecimento nas relações com o Uruguai, provocado pela candidatura brasileira à OMC, cedeu lugar a manifestações mais ou menos ambíguas do Paraguai sobre um possível interesse em negociar diretamente com os EUA a formação da Alca.

Os contenciosos comerciais Brasil-Argentina têm-se tornado mais freqüentes. Cerca de duas dezenas de produtos brasileiros estão sendo monitoradas ou já foram objeto de medidas efetivas, voluntárias ou não, para restringir seu acesso ao mercado argentino. A parcela representada por tais exportações é pouco expressiva: menos de 1% para a linha branca, pouco mais de 1% para calçados e tecidos, 3% para o papel. Estes casos não justificam o ruído que fazem ou a contaminação política que ensejam. Melhor seria que as soluções fossem buscadas pelos próprios setores envolvidos e, quando não fosse possível, pela via judicial, na medida em que a norma do Mercosul foi incorporada à legislação nacional de cada um dos países membros. O pior é que a limitação às exportações brasileiras freqüentemente não se traduz em aumento das vendas da indústria argentina, mas no incremento das importações provenientes de terceiros países.

Agora é chegada a vez dos automóveis. O governo argentino já indicou sua intenção de não cumprir os termos do acordo automotivo que previa o livre comércio a partir de janeiro de 2006. Não se trata apenas de recusar a liberalização do comércio, mas de introduzir restrições adicionais ao intercâmbio, entre as quais a alteração do chamado flex - ou seja, o direito de importar por dólar exportado -, e estabelecer novas condições para as importações, entre as quais a geração de emprego, os investimentos e os novos projetos. A preservação e mesmo o reforço do comércio administrado resolverão? Parece que não. A fabricação de automóveis do Mercosul representava 4,7% da produção mundial em 1997. Este porcentual caiu para 3,9% em 2004. Enquanto isso, a participação da China subiu de 3% para 7,9% e a do Leste Europeu, de 1,9% para 2,5%. A excessiva regulamentação do intercâmbio prejudica os mecanismos de integração da indústria e, por conseguinte, a competitividade dos veículos produzidos no Mercosul.

Em vez de avançar na direção do livre comércio e da união aduaneira, como se propõe o Mercosul, estamos dando marcha à ré. Aumentando as barreiras ao comércio, reduzindo a atração para os investimentos e, o que é mais grave, aprofundando a incerteza jurídica para os que querem investir ou comerciar no Mercosul.

A pretensão argentina de estabelecer, ainda que sob novas roupagens, um mecanismo de salvaguarda, com o objetivo de reduzir importações ou ao menos intimidar os exportadores brasileiros - como fazem freqüentemente os EUA -, representaria mais um retrocesso. A reivindicação não é nova, foi apresentada várias vezes no passado e sempre recusada pelo governo brasileiro, por boas razões. Primeiro, porque a salvaguarda é estranha à natureza de uma união aduaneira. Mutatis mutandis, seria o mesmo que o Estado da Bahia impor salvaguardas a vendas de Goiás. Segundo, porque a adoção de um mecanismo desse tipo, ainda que sob o eufemismo de "cláusulas de adaptação competitiva" (CAC), só faria ampliar a insegurança jurídica no Mercosul.

Em vez de remendos tópicos, é hora de buscar soluções permanentes. Políticas que façam avançar, e não retroceder, o Mercosul. Para tanto é preciso reconhecer que o problema não está no Mercosul, mas sim na queda da produtividade em vários segmentos da indústria argentina (2% no caso de veículos, 22% em têxteis, 31% em móveis, para citar apenas casos em que há concorrência com o Brasil). De outro lado, é necessário admitir que a indústria argentina se encontra em recuperação e precisa aumentar a sua competitividade. A saída não está na proteção, que, adotada isoladamente, é apenas o analgésico que reduz a dor, mas não cura a doença. A resposta está em aperfeiçoar a coordenação de políticas econômicas e em promover os mecanismos para a integração das cadeias produtivas regionais, projeto já anunciado várias vezes, mas que só tem avançado efetivamente no setor de móveis.

Como se não bastassem as dificuldades presentes, a eventualidade da adesão da Venezuela ao Mercosul tornará mais complexo e árduo o processo de integração. O ingresso da Venezuela é desejável e representa o caminho natural para a integração sul-americana. Mas a entrada de um novo membro não pode ser feita da noite para o dia. Requer um processo de adaptação econômica que pode levar anos. Além disso, a participação do país em duas uniões aduaneiras - como é o Mercosul e pretende ser o Grupo Andino - é uma situação inédita e de difícil formatação jurídica, a menos que a adesão ao Mercosul não seja plena ou o compromisso com o Grupo Andino se torne mais tênue.

O Mercosul veio para ficar. Todos queremos fortalecer a integração com nossos vizinhos. Mas a saída não está em restringir o comércio. Em vez do intercâmbio administrado e da proteção, precisamos promover investimentos e parcerias empresariais, de modo a preparar o terreno para a consolidação de um espaço econômico comum. Para avançar efetivamente o Mercosul precisa de mais, e não menos, competição.