Título: A absoluta certeza... da probabilidade
Autor: José Nêumanne
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

O comissário José Dirceu é autor da pérola "estou cada vez mais convicto de minha inocência", que só prova mesmo é que antes até ele acreditava menos em si mesmo. Agora seu ex-chefe, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais versado em batatadas semânticas, garantiu a entrevistadores e telespectadores da milésima edição de Roda Viva que tinha "certeza" de que algo seria "provável". Neste país, onde os contraventores se jactam do valor de seus papéis ("vale o que está escrito"), mas os legisladores negociam as próprias assinaturas com desfaçatez idêntica à com que os depoentes nas CPIs mentem, ao amparo da Justiça, nada disso chega a surpreender. Com a tranqüilidade dos que se crêem acima do bem e do mal, o presidente da República deu um curso inteiro de sua "neológica" na efeméride. Nem as ciências exatas escaparam. Quando, por exemplo, um dos ex-âncoras convidados para entrevistá-lo, o radialista e professor de História Heródoto Barbeiro, lhe perguntou sobre seu desapreço ao trabalho, ele respondeu que nem em 22 anos de labuta "num chão de fábrica" se esforçara tanto quanto nestes últimos 34 meses de exercício da Presidência da República. Conheci pessoalmente Sua Excelência em 1975, quando era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, e ele já não batia cartão na Villares havia pelo menos três anos. Não precisei de uma calculadora para descobrir, espantado, que nosso primeiro magistrado iniciou sua profícua vida de torneiro mecânico aos meros 4 anos de idade. É um caso de precocidade que realmente está a merecer, no mínimo, um registro no Guinness e uma estátua na Praça da Sé.

Nenhum dos entrevistadores, contudo, atentou para o feito espetacular do entrevistado, que também mandou os fatos às favas ao garantir que não há evidências que comprovem o "mensalão" (e por isso Roberto Jefferson foi cassado) nem também que incriminem Waldomiro Diniz, ex-subchefe de sua Casa Civil para Assuntos Parlamentares. Infelizmente, todos se esqueceram de que o ex-presidente nacional do PTB fora cassado por haver confessado ter praticado os mesmos crimes de que acusou os ex-aliados do PT. E de que os escândalos de corrupção que derrubaram o chefe da Casa Civil e fragilizam o ministro da Economia ficaram evidenciados, sim, em provas testemunhais (nada do que Jefferson contou foi desmentido nas investigações) e documentais (os saques do "valerioduto").

E o mais grave: três de seus protagonistas já foram flagrados na prática de delito. A saber: o citado Waldomiro Diniz foi filmado e gravado achacando Carlinhos Cachoeira e, ao ser confrontado com a denúncia pela revista Época, o confessou. Ao contrário do que Lula afirmou e não foi contestado por nenhum de seus entrevistadores. Nesse específico episódio, causa ainda espécie o fato público e notório de a Polícia Federal, sob as ordens do solerte criminalista Márcio Thomaz Bastos, ainda não ter produzido um inquérito sequer que tenha sido considerado "aceitável" pelo Ministério Público. O chefe de Equipamentos dos Correios, empresa estatal, na gestão do entrevistado, Maurício Marinho, foi filmado embolsando R$ 3 mil de propinas. E José Adalberto Vieira da Silva, assessor parlamentar do deputado estadual cearense José Nobre Guimarães, irmão do ex-presidente nacional do PT José Genoino, foi pilhado pela Polícia Federal transportando dólares na cueca.

Além de apostar na força da convicção das probabilidades, o presidente também parece confiar cegamente na tradição de memória curta do povo. Ao longo das duas horas da entrevista, ele assumiu a responsabilidade por tudo o que ocorreu sob sua égide, mas limitou essa responsabilidade a "mandar apurar". Com sua maneira muito peculiar de esticar o sentido das palavras, ele se esqueceu de explicar a entrevistadores e telespectadores que faz parte de "mandar apurar" torpedear (com a ajuda dos aliados nas presidências da Câmara e do Senado) a CPI de Waldomiro Diniz e tentar dar o mesmo destino à proposta de prorrogar os trabalhos das CPIs até abril. No caso, justiça seja feita, um dos ex-âncoras do tradicional programa das segundas-feiras na TV Cultura cobrou os esforços que seu governo andou fazendo para impedir investigações isentas - numa dessas tentativas, os então ministros José Dirceu e Aldo Rebelo (PCdoB-SP) imploraram ao já então desafeto Roberto Jefferson que retirasse as assinaturas do PTB. Lula justificou, então, que estava viajando. Com a freqüência com que se ausenta do gabinete em Brasília, nem será preciso checar se falou a verdade. Mas não esperou que passasse uma semana da entrevista para capitanear mais um espetáculo grotesco de retirada de assinaturas de representantes do povo. Para tanto, diga-se, contou com a ajuda pressurosa de gente que se apresenta como confiável, casos do presidente do Conselho de Ética da Câmara, Ricardo Izar (PTB-SP), e do relator do processo de cassação de Dirceu no mesmo conselho, Júlio Delgado (PSB-MG).

Com Palocci no pelourinho; o "valerioduto" fazendo o trajeto inverso dos navios negreiros e aportando em praias de Angola, na África; o ex-dirigente do Banco Rural Carlos Godinho confirmando (à revista Época) que os empréstimos (da versão que Lula avalizara em Paris) ao PT não passavam de farsa; e o depoimento escabroso de Vladimir Poleto à CPI dos Bingos, reforçando as suspeitas de que vieram dólares sujos de Cuba (não importa se doados ou repatriados), só resta saber se a farta distribuição de Bolsas-Família do Fome Zero será suficiente para essa "neológica" lulista da absoluta certeza da probabilidade nos ser imposta por mais quatro anos. Afinal, se até assinaturas dos representantes do povo podem ser trocadas por verbas do orçamento, tudo será lícito nesta República.