Título: Uma pizza fria e crua
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2005, Notas & Informações, p. A3

Segundo o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), o prazo da CPI dita do Mensalão esgotou-se na quarta-feira, antes de o relator, deputado Ibrahim Abi-Ackel (PP-MG), apresentar seu relatório final. Ou seja, a pizza foi servida crua e fria ? um final melancólico mas que não justifica lamentos. Os requerimentos para sua prorrogação abortaram, não só por falta de apoio, pelo pequeno número de assinaturas que alguns parlamentares oposicionistas conseguiram obter, mas também pela lúcida constatação geral de que seria insensata a continuação do exercício de enxugamento de gelo executado por seus membros.

Isso não deveria, de qualquer maneira, surpreender ninguém. O mostrengo nasceu com dois objetivos específicos. O primeiro seria investigar antigas denúncias sobre compra de votos pelo governo anterior para garantir a maioria parlamentar que assegurou a vitória da emenda da reeleição do presidente tucano Fernando Henrique. O segundo, mas não o menos importante, seria fazer fogo de encontro às outras duas CPIs em funcionamento no Congresso, a dos Correios, sob suspeito controle governista, e a dos Bingos, comandada pela oposição. A prática logo mostraria que não havia clima político para discussão de um assunto distante como a reeleição e, em vez de se contrapor ao trabalho das outras, esta terminou se tornando uma espécie de complemento da CPI dos Correios, com cujo relator, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), Abi-Ackel assinaria um relatório conjunto ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados com lista de 18 parlamentares acusados de se beneficiarem do propinoduto de Marcos Valério.

Na verdade, este foi o único resultado prático dessa pouco útil CPI, presidida pelo senador Amir Lando (PMDB-RO), que antes havia passado em brancas nuvens pelo Ministério da Previdência no governo Lula. Só isso já seria suficiente para superar as expectativas de qualquer observador otimista. Pois, afinal, o relator, ex-ministro da Justiça no regime militar, do partido de Paulo Maluf e com o filho Paulo entre os beneficiários do ?valerioduto?, não poderia ser considerado o mais indicado para o cargo.

A desimportância das investigações por ele relatadas pode ser medida pela surpresa que os membros da CPI, ele inclusive, se permitiram ter com a iminência do encerramento do prazo, sem que se tivesse ou providenciado o relatório final, ou apresentado o requerimento para sua prorrogação. A hesitação entre atender ao clamor da opinião pública por um mínimo comprometimento com a verdade dos fatos e não desagradar ao governo, que insiste teimosamente em propagar versões que negam tais fatos, partindo da presunção da inconsistência da denúncia feita pelo presidente nacional afastado do PTB, deputado cassado Roberto Jefferson (RJ), levou-o a concluir pela confirmação do ilícito, mas negando a periodicidade indicada na denominação.

?Há múltiplos indícios de que houve distribuição de recursos a deputados da base?, informou o relator, reconhecendo o óbvio, já exaustivamente comprovado por provas testemunhais e documentais e pelo cotejo das movimentações bancárias. Em seguida, numa concessão à versão oficial, adotada pelos governistas, inclusive pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, Abi-Ackel socorreu-se de uma sutileza semântica: ?Isso não caracteriza exatamente o que se denominou mensalão, pagamentos sistemáticos.? Para, logo depois, admitir o impossível de ser negado: ?Mas houve sem dúvida pagamentos de dinheiro em espécie, em alguns casos com uma só prestação, em outros com prestações sucessivas.?

Esse relatório ? que se limita a acusar bodes expiatórios convenientes, como o já expurgado Delúbio Soares e Marcos Valério ? não passa de uma crônica póstera da tentativa encomendada de tapar o sol com peneira. A saída segundo a qual não pode haver mensalão se os pagamentos ilícitos não eram mensais é comparável ao rabo de fora que o gato inábil deixa ao tentar esconder sob o tapete toda a porcaria produzida por um grupo que assaltou os cofres públicos e dilapidou o patrimônio ético do PT sem-cerimônia. A CPI, já foi tarde e não deixou ninguém com saudade.