Título: Alfonsín:`Mercosul poderia ter ido mais longe¿
Autor: Nilson Brandão Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/11/2005, Economia & Negócios, p. B6

"O Mercosul poderia ter ido mais longe. Ficou aquém daquilo que Sarney e eu havíamos planejado.¿ Este é o diagnóstico que o ex-presidente da Argentina Raúl Alfonsín (1983-89) faz sobre o bloco comercial, econômico e político. No dia 30 de novembro de 1985, em um encontro histórico na Ponte Tancredo Neves, sobre o Rio Iguaçu, na fronteira entre Brasil e Argentina, Alfonsín e o ex-presidente José Sarney (1985-90) construíram as bases para o que viria a ser o Mercosul. Alfonsín, do alto de seus 78 anos, tal como um pai que não vê o filho se desenvolver como era esperado, não teve papas na língua para afirmar que o Mercosul precisa de mais instituições, de um Parlamento e uma moeda única. De quebra, ele critica a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A seguir, trechos da entrevista exclusiva que Alfonsín concedeu ao Estado em seu austero apartamento da Avenida Santa Fe.

Que lembranças o sr. tem do encontro com Sarney, em 1985?

Conheci o Sarney em sua posse. Logo de cara, percebi que íamos ser amigos. Pedi ver a Represa de Itaipu, que havia sido fonte de discussões anos antes entre o Brasil e a Argentina. Depois, levei-o à nossa instalação de enriquecimento de urânio (que era secreta), para que visse que era de fins pacíficos. Isso mostrou nossa vontade de buscar a integração. A idéia era superar as lendas que indicavam que os dois países sempre seriam concorrentes, especialmente na área militar. Os medos ficaram para trás. Agora temos compreensão mútua.

O sr. enfrentou, na época, a oposição de setores dentro da Argentina que resistiam à idéia de uma integração com o Brasil?

Não. Mas, o que acontecia era uma posição permanente dos EUA contra qualquer espécie de acordo entre os países da América Latina. Posteriormente, foram surgindo alguns problemas no Mercosul, principalmente pela pressa em que a união alfandegária foi sendo levada, tal como havia determinado o Tratado de Assunção. Sarney e eu havíamos pensado na integração em um prazo de 10 anos. Mas, eles (os sucessores) a reduziram para cinco anos. Isso causou problemas. Mas, esses problemas não devem nos assustar, já que no primeiro ano da comunidade do aço e do carvão (embrião da Comunidade Econômica Européia e posteriomente, União Européia) foram registrados mais de 700 conflitos. Os conflitos acontecem. O problema é quando não existem mecanismos que possam resolvê-los. Para isso é preciso um organismo supranacional.

Há 20 anos, o sr. imaginava que o Brasil e a Argentina se tornariam tão integrados como hoje?

Não...Eu imaginava que estariam mais integrados ainda! Sarney e eu pensávamos em outros aspectos, que foram deixados de lado. Nos anos 90, houve grandes avanços na área comercial, que eu não desmereço, de forma alguma. Mas, agora, o Mercosul está voltando a essa concepção que havíamos tido no início, de que a integração deveria englobar não somente o lado comercial, mas também as áreas científica, tecnológica, cultural e política. Há muito a fazer no Mercosul, mas acho que estão surgindo resultados. Teria sido muito importante ter políticas macroeconômicas compatíveis, especialmente políticas cambiais.

Se o sr. fosse dar uma nota de 1 a 10 para o Mercosul, qual seria?

Eu daria nota 6 ... Falta muito coisa para a fazer. Mas, essa é uma nota boa.

Há poucos dias, parlamentares dos países sócios definiram quais serão o formato e os prazos para a formação de um futuro Parlamento do Mercosul...

Isso é bom, desde que não seja um organismo burocrático a mais. Será benéfico, sempre que isso não sirva para que (os políticos) façam turismo...

A idéia da moeda única é de sua época...

Pensei que a moeda poderia ter o nome ¿gaúcho¿. Sarney gostou da idéia. A palavra é a mesma nos dois países. Pelo menos, a princípio, poderia ser uma moeda usada para o intercâmbio comercial.

Com freqüência há empresários reclamando de invasões de produtos em ambos países. Mas esses setores em conflito envolvem menos de 5% do intercâmbio comercial...

Geralmente, prevalecem os interesses particulares e são esquecidos os interesses gerais. O estranho, nesses casos, é que quem mais se queixa e fala da dependência do Brasil são os mesmos que defendem a Alca. Mas se eles não podem concorrer com os industriais de São Paulo, vão poder concorrer com os empresários dos EUA?

O sr. acredita na retomada das negociações da Alca?

Não acho que a Alca seja, hoje em dia, uma prioridade dos EUA. Por isso, espero que não aconteça uma enorme pressão, o que poderia acontecer se fosse algo importante na agenda do governo americano. Sou muito cético em relação à Alca. Os Estados Unidos pedem tudo e não dão nada em troca. Não poderia aceitar a Alca na situação atual, eles continuariam com os subsídios agrícolas e nós teríamos que abrir as portas a seus produtos industrializados.

O fato de a economia brasileira ser maior do que a argentina causa desequilíbrios que atrapalham a integração?

Isso dá para resolver. Só temos que procurar nichos onde crescer, avançar em alta tecnologia, podemos conviver e crescer junto com o Brasil...

O que o sr. acha da entrada da Venezuela no Mercosul?

Estou de acordo. É um sócio que complementa as economias dos países do bloco e é um grande produtor de petróleo, que agora possui esses preços extraordinários...o que fez com que eles (os venezuelanos) agora estejam nadando em dólares, não é?