Título: No trânsito, a culpa é sempre do outro
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/11/2005, Metrópole, p. C1

Uma pesquisa realizada em sete capitais mostrou que, para o motorista brasileiro, o errado no trânsito é sempre quem está no veículo ao lado ou à frente. Feito de julho de 2004 a julho de 2005, o trabalho tinha como objetivo verificar o grau de violência entre condutores. Os pesquisadores, porém, se depararam com uma dificuldade: acharam vítimas em profusão, mas pouquíssimos agressores. Para o estudo, a empresa Synovate ouviu 550 motoristas. Destes, 52% disseram ter recebido farol alto constante de outro motorista nos 12 meses anteriores. Poucos, porém, admitiram ter cometido grosseria semelhante: 12%. Dos entrevistados, 30% contaram ter recebido gestos obscenos ou xingamentos. Apenas 9% admitiram ter feito o mesmo.

A discrepância é atribuída a uma característica: a vergonha do motorista em admitir que errou. "Isso demonstra que as pessoas têm noção do que pode ou não pode ser feito na área de comportamento de trânsito", avalia a assessora do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) Dulce Lutfalla. "Quando surge o conflito, dizem que a culpa é do outro."

A pesquisa, um braço de um estudo mais amplo sobre violência no trânsito, ainda abordou atitudes extremas, como violência física ou ameaça. Aqui, a diferença de proporções entre agressor e vítima foi menos gritante. Só 4% dos motoristas disseram ter sofrido ameaça do condutor de outro veículo. Por sua vez, apenas 1% afirmou ter adotado alguma atitude ameaçadora. O estudo revelou ainda que a maior parte dos episódios de agressividade (46%) ocorreu em trajetos rotineiros, como a ida para o trabalho.

"Não me estresso mais", garantiu o músico William Torres, de 28 anos, que mora em São Paulo. Até pouco tempo atrás, Torres sentia vontade de subir pelas paredes quando recebia xingamentos, buzinadas insistentes ou o farol na cara. "Agora chego até a pedir desculpas para o outro motorista, mesmo que tenha sido ele quem cometeu a barbaridade: as pessoas andam muito violentas e podem estar armadas."

Não bastasse a falta de educação, certos comportamentos têm punição prevista no Código de Trânsito Brasileiro. Dirigir "com o facho de luz alta de forma a perturbar a visão de outro condutor" é infração grave (R$ 127,69 de multa e 5 pontos na carteira) e buzinar "prolongada e sucessivamente a qualquer pretexto" é infração leve (R$ 53,20 de multa e 3 pontos). A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) não tem esse tipo de multa discriminado nas estatísticas porque a incidência - pelo menos de casos flagrados pelos fiscais - é baixa (Veja acima as infrações mais freqüentes).

A pesquisa não se restringiu ao Brasil. Participaram do levantamento também Grécia, Estados Unidos, França, Malásia, Índia, Coréia, Taiwan, África do Sul e Reino Unido. O estudo revelou, por exemplo, que toda a cerimônia britânica é deixada de lado assim que a pessoa liga o carro. No Reino Unido, 81% dos entrevistados disseram ter sido insultados com palavras ou gestos obscenos nos 12 meses anteriores. Número superior aos de Taiwan e da França: 13% e 18%.

Para a professora Sonia Schedel Sparti, da Pontifícia Universidade Católica de Sorocaba, que elegeu a violência no trânsito como tema de tese de doutorado, o problema dos motoristas é que os outros são sempre vistos como adversários. "A idéia corrente é de que o outro é alguém que está lá para atrapalhar, nunca alguém que esteja passando por problemas semelhantes: o outro é que é lerdo, que dirige mal."