Título: São eles que transcrevem tudo
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Metrópole, p. C1,3

A rotina de reclamações dos dez peritos que escutam milhares de conversas gravadas na cidade de São Paulo

O dia inteiro transcrevendo grampos legais, o perito Ubiraja Scatolini vai entrando nas conversas que ouve, vai mergulhando em um mundo paralelo. Imagina um rosto para os protagonistas dos diálogos, em alguns casos até decide se eles são feios ou bonitos. Já aconteceu de ligar a TV, ver um sujeito preso por conta de uma investigação que ajudou a degravar e discordar da aparência dele. Francamente, o personagem que criou durante as semanas em que acompanhou seus papos com a mulher, amigos, amantes e cúmplices era muito melhor. "Você vai ouvindo aquilo... você vai entrando... você vai fazendo um filme em sua cabeça. Quando entrego o relatório, muitas vezes já tenho a imagem da casa da pessoa, dos móveis, das roupas que ela usa." Ubirajara é chamado de Bira pelos outros nove peritos que trabalham espalhados pelas 12 salas do segundo andar do Instituto de Criminalística (IC). Está por ali há 11 anos - e construiu tantos roteiros a partir do palavreado alheio que já nem se lembra. Com os colegas, é encarregado de transcrever todas as fitas e CDs que resultam dos grampos legais da cidade de São Paulo. Todas. "É um trabalho insano, enlouquecedor", diz. Transcrever não é um termo muito bem visto entre os peritos do Núcleo de Identificação Criminal. Decupar uma conversa, por ali, não é só passar rapidamente para o papel o que se ouve. Para ser periciada pra valer cada hora de diálogo leva 15 horas para ser examinada. "Se você vai periciar uma hora de gravação do William Bonner, o trabalho sai em dez horas. Se faz o Ives Gandra Martins, sai em oito. Se for o Márcio Thomaz Bastos, em nove. Mas se analisa a fala de um bandido, é um Deus nos acuda. Ouvir o diálogo entre essas pessoas chamadas Pezão, Cabelo, Naza ou Chato é um caos. Eles têm baixa instrução, não falam de maneira coerente, usam gírias, dão voltas na conversa. É preciso voltar o tempo inteiro, ficar atento ao som do entorno, porque ali pode ter alguma informação importante. É por isso que digo: nosso trabalho é desumano", diz Carlos Coana, perito assistente do núcleo.

Nos últimos três anos, 5.400 casos chegaram ao longo e escuro corredor do departamento. Alguns aparecem em caixas com centenas de fitas e dezenas de CDs. Em cada fita, alterada a rotação, cabem até três horas de conversa. Em cada CD cabem de 10 a 15 fitas. Na semana passada, o perito Paulo Hutterer estava trabalhando em um caso, enviado pelo Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc). São 50 fitas e 36 CDs de conversas. O caso seguinte da fila, uma investigação de entorpecentes e tráfico de drogas, estava em 47 fitas e 4 CDs. E, na estante de sua sala, 65 saquinhos de plástico com lacre azul aguardam pela vez - mas tentar saber quantas horas de gravações estão guardadas ali dentro é um exercício masoquista demais para Hutterer. "A lei diz: interceptação só para casos em que é imprescindível. Mas agora gravam tudo, tudo. E mandam para cá. Por exemplo: o jeito como as mulheres dos bandidos gostam de festa de criança, é uma loucura. Ficam o tempo todo no telefone falando disso. A gente tem de ouvir, porque, mesmo que não vá para o relatório final, somos obrigados a checar a fita inteira. Peritos são formados para fazer um trabalho científico. Aqui a gente vira escrivão. Nosso trabalho é muito desagrádavel."

Nos grandes casos, que envolvem dezenas de fitas, os peritos demoram meses para concluir o relatório final. Trabalham oito horas por dia, com fones pendurados ao ouvido. Recebem pelo tímpano adentro amostras do pior do ser humano. Entram em contato com um mundo sem camaradagem, sem códigos de honra, sem apego à vida.

EXAUSTÃO

Daniela Meiko Abe tem 31 anos e está no núcleo há três. Em um de seus primeiros trabalhos, passou meses acompanhando as gravações de um caso de seqüestro, que ainda estava em curso. Ouviu as negociações entre a família do refém e os bandidos. O diálogo tinha ao fundo sons de tortura. Daniela precisou ouvir bem entre os gritos e gemidos, para ver se encontrava sinais capazes de mostrar se era simulação ou de fato o refém era vítima de flagelo físico. Ficou abalada durante semanas. Mas dia desses teve o único retorno de seu trabalho que julgou recompensador. Recebeu um ofício enviado por um juiz, que elogiou o laudo feito por ela e disse que foi fundamental na condenação de 11 seqüestradores. "Foi legal. A gente nunca sabe o que acontece depois de fazer o relatório, se o nosso trabalho foi importante... Mas preciso sair daqui e esquecer o que faço. Escuto muita coisa ruim e não posso parar de confiar nas pessoas. O trabalho aqui é difícil, massacrante."

Depois de reproduzir milhares de horas de expressões, entonações, perguntas, respostas e até silêncios das pessoas grampeadas, a equipe do Núcleo de Indentificação Criminal aprendeu a ouvir nas vozes algumas de suas intenções. Às vezes, em uma conversa sem importância, os peritos entram em alerta assim que percebem uma nuance diferente. Quando o sujeito é bandido mesmo, dizem eles, sabe que está sendo grampeado e tenta trocar informações em código com os cúmplices. Os técnicos ficam atentos quando começam a ouvir frases psicodélicas demais.

- A cadeira chega amanhã?, pegunta um dos homens gravados.

- Ah, mano, chega junto com a pasta de dente. Agora, manda o cumpadi ficar esperto na couve, responde outro.

"É diálogo suspeito. Pelo tom de voz, a gente já percebe que estão usando sinônimos para drogas ou armas", diz José Osmar Bercelli. Perito há oito anos, ele acaba de voltar a fazer transcrições. Andava ocupado com a perícia de imagens - um trabalho menos comum por ali do que ouvir gravações - porque teve uma hérnia de disco e mal conseguia atender o telefone. Agora, tem apenas o que acredita ser os efeitos colaterais normais de seu ofício. Está com uma marca roxa no pulso, causada pela freqüência do uso do mouse. Trabalha em um caso de porte ilegal de armas, gravado em 32 fitas cassete e 22 CDs. Recebeu o caso em 30 de setembro, dois meses depois da ocorrência. "Levei para casa para conseguir transcrever. Este ano foi mais humano para mim. Mas cheguei a ficar estressado a ponto de querer brigar com meus colegas. Este trabalho desperta o desespero na gente."

Ubirajara Scatolini já foi dono de empresas. Quebrou durante o governo Collor e resolveu ser perito porque admirava a polícia científica. Carlos Coana é engenheiro e advogado. Entrou para o IC porque acha que uma perícia bem-feita é um ato sofisticado de investigação. Paulo Hutterer é perito criminal há 20 anos. Trabalhou na Delegacia de Homicídios, mas foi afastado por conta de denúncia de corrupção - e agora fala com saudades do trabalho que fazia antes. Daniela Meiko Abe entrou para a Polícia Técnica porque achou que seria transferida em sua área de formação, a odontologia. Como estavam precisando de ajuda na transcrição de um número cada vez maior de gravações, foi parar no núcleo. José Osmar Bercelli fez administração. Virou perito por achar que faria um trabalho importante na resolução de crimes. Os profissionais que atuam na última ponta da grampolândia oficial, definitivamente, não são felizes. "Fomos soterrados por essas gravações. Viramos burocratas, porque alguém precisa ouvir essas fitas", afirma Coana.

Ao longo do ano, o IC montou uma comissão engarregada de levantar o número de casos enviados aos peritos do Estado. A numeralha inspirou a portaria 1305, de fevereiro. "A medida obriga os delegados a apontar o trecho das gravações cuja transcrição é fundamental para a apuração do crime. É inviável transcrever tudo o que eles mandam", diz Carlos do Valle Fontinhas, diretor do Centro de Perícias. Os dados também ajudaram o departamento a conseguir que a nova leva de peritos a ser aprovada no próximo concurso reserve pelo menos mais dez pessoas para o núcleo de identificação.

Injuriados com o excesso de gravações, os peritos inventaram maneiras de tentar voltar à natureza de sua profissão e influir no rumo das investigações. Passam na frente da fila todos os casos de prisão em flagrante, porque podem ajudar a soltar um preso inocente.