Título: Um caso de polícia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/11/2005, Notas e Informações, p. A3

As operações de crédito consignado para desconto em folha de pagamento, que deveriam ser apenas uma facilidade para aposentados e pensionistas do INSS levantarem recursos em bancos a custos módicos, estão dando ensejo a ações criminosas. Ainda mais grave é a convicção de que os crimes desse tipo não seriam possíveis sem o concurso de funcionários de instituições financeiras, justamente daquelas que se especializaram nessa modalidade de empréstimos.

Antes de descer ao caso concreto descrito em reportagem publicada ontem pelo Estado, cabe lembrar que as operações de crédito consignado foram as que mais cresceram (+91,9%) nos últimos 12 meses, atingindo R$ 31 bilhões em outubro e correspondendo a 45% do conjunto das operações de crédito pessoal, desbancando empréstimos de custo muito mais elevado, caso do cheque especial ou dos empréstimos pessoais não consignados.

Além disso, é justamente no crédito consignado que os bancos correm menos risco, porque o cliente autoriza o INSS ou a empresa onde trabalha a debitar diretamente dos seus vencimentos mensais o valor da prestação devida ao banco.

A repórter Márcia de Chiara mostrou que Rosemary Cunha, filha e procuradora de um aposentado de 83 anos, só tomou conhecimento da fraude de que o pai estava sendo vítima ao procurar o banco BMG, no primeiro trimestre deste ano, para levantar um empréstimo consignado. O banco informou-a de que um financiamento já havia sido proposto pelo pai dela, estava aprovado e passaria a ser descontado em folha a partir do mês seguinte. Traduzindo, já havia sido sacado pelo fraudador. Rosemary dirigiu-se então ao Bradesco, onde o pai recebe a aposentadoria e confirmou: ele já tinha contratado um crédito com o BMG. Ao procurar o INSS em busca de ajuda, Rosemary foi orientada a recorrer à Ouvidoria da Previdência, onde formalizou queixa e solicitou o cancelamento do desconto. Aí teve nova surpresa: sua mãe também tinha sido vítima do mesmo golpe, no mesmo BMG.

Os efeitos da dupla fraude não foram, ao contrário do que se poderia esperar, sustados prontamente. Os benefícios do pai e da mãe de Rosemary continuaram a sofrer descontos entre março e outubro, até que o banco ressarcisse a reclamante, sem juros, seis meses depois.

O caso dos pais de Rosemary não é o único. Nada menos de 16,8% das reclamações quanto ao crédito consignado referem-se a descontos sem autorização do segurado. Declarações genéricas foram dadas tanto pela Federação Brasileira das Associações de Bancos (Febraban) como pelo INSS.

"Vemos esse tipo de fraude com preocupação", declarou o presidente do INSS, Valdir Moysés Simão. Ele lembrou que já foram proibidos os empréstimos contratados por telefone, o número máximo de parcelas foi reduzido para 36 meses e o Conselho Nacional da Previdência Social já suspendeu as operações de crédito consignado concedidas com base em cartão de crédito.

A Febraban informa que os bancos têm ressarcido os aposentados e pensionistas e constatado que as fraudes são cometidas por pessoas que têm acesso aos dados do segurado e se fazem passar por ele, o que parece óbvio.

O que está ocorrendo com os aposentados é muito grave. Na prática, eles têm sido bombardeados por propaganda maciça e por telefonemas de operadores de telemarketing que falam em nome de várias instituições bancárias oferecendo facilidades de crédito.

Tudo indica que os nomes dos aposentados estão sendo fornecidos às centrais de telemarketing por alguma instituição, pois não se pode sequer supor que o INSS esteja entregando a terceiros os cadastros de seus segurados.

É evidente que os empréstimos tomados fraudulentamente em nome de aposentados configuram um caso de polícia - sem embargo da fiscalização do Banco Central. Trata-se de estelionato. Os bancos estão obrigados pelas regras de compliance a investigar as práticas de seus funcionários e, constatada fraude, denunciá-los. Ante a gravidade do crime, a omissão também seria criminosa.