Título: Fujimori atrás das grades
Autor: Fujimori atrás das grades
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Internacional, p. A26

Não é de estranhar que os terroristas aprontem das suas por toda parte e o cidadão comum ande inquieto com a falta de segurança num mundo onde um réu contumaz, procurado pela Interpol e sob ordem de captura em 184 países, pode sair alegremente do Japão num avião particular, circundar meio planeta, fazer escala sem ser molestado em Tijuana, México (os Estados Unidos negaram que ele tenha parado também em Atlanta), aterrissar em Santiago do Chile e, depois de passar pela sala VIP do amável aeroporto chileno, instalar-se numa suíte do Hotel Marriott. Tudo parece indicar que, sem o escândalo gerado por sua presença e, muito especialmente, sem o protesto da candidata socialista à presidência do Chile, Michelle Bachelet, o ex-ditador peruano Alberto Fujimori teria conseguido o que queria. Quais eram suas intenções? Difícil averiguar. Ele não podia entrar no Peru, onde o Congresso da República o privara dos direitos civis e a prisão o aguardava. Pretenderia exilar-se no Chile, de onde, com seus vastos recursos acumulados nos anos em que usurpou o poder, poderia desestabilizar o processo eleitoral peruano? Felizmente, as autoridades judiciais do Chile ordenaram sua detenção no início do mês. Agora, atrás das grades douradas de um quartel da polícia, ele espera o veredicto dos juízes que examinarão um pedido de extradição, que deve ser apresentado pelo governo peruano até 5 de janeiro. Embora seja alvo, no Peru, de 22 processos por tráfico, pilhagem dos recursos públicos, cumplicidade em múltiplos delitos, torturas e crimes contra os direitos humanos, o ex-ditador só poderá ser julgado, caso o Chile o extradite, pelos delitos que as leis penais chilenas contemplam.

Será que os policiais e funcionários de fronteira do México e do Chile andam tão desnorteados a ponto de um personagem extremamente conhecido, foragido da Justiça de seu país e perseguido pela polícia internacional, lhes escapar tão facilmente? Ou o poder de corrupção da máfia fujimorista, que nos dez anos de ditadura (1990-2000) perpetrou a mais espetacular pilhagem do patrimônio nacional da história peruana, é capaz de pulverizar todas as barreiras legais e as alfândegas latino-americanas? Os dois países anunciaram que investigarão o ocorrido e punirão os responsáveis. Tomara.

No entanto, o Japão tem mais responsabilidade que esses países no deplorável episódio, graças à proteção sistemática que ofereceu a Fujimori desde que este, a pretexto de assistir a um fórum internacional no Brunei, fugiu do Peru e enviou ao Congresso da República, por fax, sua renúncia à presidência. Não contentes por negar-se a extraditá-lo, alegando que se trata de um súdito japonês, as autoridades de Tóquio, diferentemente das suíças, americanas e outras, fecharam todas as portas aos pedidos do governo peruano de informação sobre as copiosas quantidades de dinheiro ilícito que Fujimori enviou ao país de seus ancestrais por intermédio do cunhado, Víctor Aritomi Shinto, a quem manteve estrategicamente no posto de embaixador do Peru em Tóquio durante seu governo. Este personagem, também foragido da Justiça peruana, goza assim mesmo de um exílio esplêndido no Japão. Agora, o governo japonês, como se não lhe coubesse uma importante dose de cumplicidade na travessia ilegal de Fujimori - permitindo que ele abandonasse o país e deixando de avisar as autoridades do México e do Chile sobre a viagem do réu contumaz -, lava as mãos, dizendo que seu "súdito" deve ser tratado como um cidadão normal e que confia na Justiça chilena. Não parece ter percebido que o ex-ditador, ao se apresentar no aeroporto do Chile com o passaporte peruano, optou inequivocamente pela cidadania peruana em sua singular aventura. Fez bem o governo do Peru ao retirar seu embaixador de Tóquio para deixar clara sua irritação com o injustificável comportamento do Japão em relação a quem cometeu tantos e tão abomináveis delitos enquanto esteve no poder.

O primeiro deles foi destruir com um golpe de Estado o sistema democrático que, em 1990, o levou à presidência da república, substituída por uma satrapia onde ele, seu braço direito Vladimiro Montesinos e um bando voraz de delinqüentes dedicaram-se a roubar e, por meio de chantagem, corrupção ou crime, a suprimir toda forma de resistência às extrações que perpetravam. Para dar ao menos uma idéia da magnitude dos roubos cometidos no poder por Fujimori e os seus, basta assinalar algumas cifras. Até agora, o Peru conseguiu repatriar, de bancos suíços, americanos e mexicanos, cerca de US$ 173 milhões, resultantes de peculatos e comissões à custa do Estado peruano. A este dinheiro sujo, devidamente comprovado pela Justiça dos países que autorizaram a repatriação, é preciso acrescentar cerca de US$ 49 milhões que o Peru conseguiu bloquear em contas secretas no Panamá e outros países, vinculadas à rede de empresas fantasmas que o ditador e seus cúmplices espalharam por meio mundo para apagar os rastros de suas operações ilícitas - muitas delas ligadas aos grandes cartéis do narcotráfico que, nos anos da ditadura, gozaram de virtual extraterritorialidade na Amazônia peruana. Estas somas, já elevadíssimas para um país pobre como o Peru, são, que fique claro, apenas a ponta do iceberg das quantias astronômicas que o ditador e os seus desviaram do patrimônio nacional. Só nos últimos meses, as autoridades peruanas detectaram 70 novas contas no Panamá abertas por aliados, amigos e testas-de-ferro de Fujimori, pelas quais se movimentou, nos anos da ditadura, a formidável quantia de US$ 800 milhões.

Não obstante, o que mais deveria pesar a favor da extradição do ex-ditador foragido na balança dos juízes chilenos não são os desfalques, o tráfico e o enriquecimento ilícito de Fujimori, e sim as atrocidades cometidas contra os direitos humanos, sob suas ordens ou com sua colaboração explícita, no decênio em que ele foi amo absoluto do país. Quem quiser conhecê-las com certo detalhamento tem apenas de consultar o rigoroso trabalho realizado pela Comissão da Verdade e Reconciliação, integrada por personalidades independentes e presidida pelo então reitor da Universidade Católica de Lima, o prestigiado filósofo Salomón Lerner.

A comissão concluiu que o presidente Fujimori, seu assessor Vladimiro Montesinos e funcionários do alto escalão do Serviço de Inteligência tiveram "responsabilidade penal pelos assassinatos, desaparecimentos forçados e massacres perpetrados pelo esquadrão da morte denominado Grupo Colina". Este bando, integrado por oficiais das Forças Armadas na ativa, levou a cabo, entre outras, a matança dos Barrios Altos, um distrito de Lima, na qual 15 vizinhos, entre eles um menino de 8 anos, foram assassinados impunemente numa festa e outros 4 foram gravemente feridos, porque um agente secreto denunciara os participantes como cúmplices dos terroristas do Sendero Luminoso (a denúncia mostrou-se falsa).

Outra das façanhas sinistras do Grupo Colina foi o assassinato de nove estudantes e um professor da Universidade Enrique Guzmán y Valle, La Cantuta, que a inteligência militar denunciara como senderistas. Os dez foram seqüestrados, liquidados a bala, incinerados e enterrados em fossas clandestinas num descampado na periferia de Lima. Quando o crime foi descoberto e os restos, desenterrados, percebeu-se que os ossos calcinados das vítimas haviam sido escondidos em bolsas e caixas de sapato.

A lista dos assassinatos individuais, sob o pretexto da luta contra o terrorismo senderista, mas freqüentemente com o objetivo de silenciar jornalistas, sindicalistas ou militantes políticos adversários da ditadura, é muito numerosa. Nela figuram o desaparecimento do jornalista Pedro Sauri e o assassinato do dirigente sindical Pedro Huillca, pois nestes casos houve uma mobilização para denunciar o ocorrido. Mas, como observou o informe da Comissão da Verdade, são incontáveis os casos de homens e mulheres humildes aniquilados pela ditadura depois de espantosas torturas em calabouços, alguns deles nos porões do Ministério das Forças Armadas, e ao lado dos quais havia fornos potentes para volatilizar os cadáveres. Centenas de pessoas que caíram nas mãos daquele mecanismo homicida, muitas delas inocentes, desapareceram deste modo, sem deixar o menor rastro.

Um dos crimes mais horrendos dos anos da ditadura foi planejado e executado por decisão pessoal de Fujimori: as esterilizações forçadas ordenadas pelo ditador em campanhas do Ministério da Saúde. A pretexto de vacinar os habitantes das comunidades indígenas e aldeias isoladas dos Andes, as brigadas enviadas pelas autoridades sanitárias esterilizavam as mulheres em massa, sem lhes pedir seu parecer nem informá-las sobre o que se fazia com elas, de modo que muitas pereceram dessangradas ou por infecções.

Não são estes exemplos mais que suficientes para justificar a extradição de Alberto Fujimori ao Peru? É claro que são. É verdade que, ao contrário de outros países latino-americanos, o Chile tem uma sólida tradição jurídica que a ditadura pinochetista não chegou a prostituir de todo, mas existem, desgraçadamente, alguns exemplos recentes que põem em dúvida a independência e a competência dos juízes chilenos em casos de extradição. Dois importantes esbirros do fujimorismo, foragidos da Justiça peruana por delitos flagrantes de apropriação ilícita, corrupção e crimes contra o Estado, obtiveram lá o amparo da Justiça e agora desfrutam a hospitalidade chilena (e seus butins malganhos). Acontecerá o mesmo com o réu contumaz? Esperemos que não e que, por uma vez na história do Peru, um ex-ditador compareça a um tribunal para responder por suas malfeitorias.