Título: No Ulster, ideologia dá lugar ao crime
Autor: Laura Haydon
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Internacional, p. A25

Sem o IRA para combater, na Irlanda do Norte os paramilitares protestantes voltam-se para negócios ilícitos e atraem jovens

No pavilhão de um clube de futebol à sombra da Black Mountain em Belfast, dois rapazes com 20 e poucos anos olham fixamente para o outro lado da mesa. Estamos sentados no Greater Shankill, a algumas centenas de metros de onde ocorreram os distúrbios quando, em setembro, o Desfile Whiterock da Ordem de Orange foi obrigado a mudar de trajeto para não passar por redutos católicos. As cenas de violência estão frescas na memória dos jovens protestantes. "Posso entender por que os católicos odiaram tanto a polícia nos últimos 30 anos", diz um deles. "Agora estamos vendo a brutalidade e os abusos policiais em nossa área - a gente quase fica querendo enfiar uma faca nas costas de um policial se tiver chance." As pessoas dizem que os tumultos deram enorme impulso ao forte crescimento do número de jovens que aderem a grupos paramilitares. Mas conversando com jovens da área do Greater Shankill e da zona leste de Belfast (favorável aos britânicos) fica claro que a iniciativa de recrutar os jovens antecede os tumultos. As cenas de violência levaram o secretário do Reino Unido para a Irlanda do Norte, Peter Hain, a comparar os paramilitares legalistas a organizações mafiosas. E cada vez mais, como nas máfias, é o hedonismo, em vez da ideologia política, o que está impelindo os jovens para as gangues.

"Os paramilitares já não estão combatendo o Exército Republicano Irlandês (IRA, católico). Eles têm atividades distintas agora, como vender drogas e ganhar dinheiro", diz Neil, do Shankill. "Obviamente, os jovens olhariam e diriam: 'Bem, eu poderei dirigir um BMW, mesmo se largar a escola sem nenhuma educação. Poderei ser um dos rapazes.' Acho que é isso que atrai os jovens."

Os generosos lucros com a venda de proteção e tráfico de drogas conferiram um glamour aos líderes paramilitares que é invejado pelos jovens sem privilégios das áreas de baixo nível de escolaridade. Jim Gray, ex-comandante para o leste de Belfast da Associação de Defesa do Ulster (UDA, na sigla em inglês) recentemente assassinado, foi um caso exemplar.

Mas os rapazes que entram nas gangues raramente sentem o gosto da boa vida. "Talvez 1 em cada 20 consiga alguma coisa", diz Mark, também do Shankill. "A maioria deles fica por aí como pequenos servidores: 'Vá fazer isto, vá fazer aquilo.'" As garotas também têm sido atraídas. "Os clubes da Rua Shankill estão sendo dirigidos por paramilitares", diz Neil. "Algumas garotas vão aos clubes e ficam rodeando os peixes grandes. Elas acham que, por estarem com certos caras, as pessoas as respeitarão. Mas elas são apenas um troféu."

"A questão agora não é mais lutar por Deus e o Ulster", diz Mark. "Trata-se de gangues - 'este é nosso território, nós o controlamos, nós ganhamos dinheiro de proteção aqui, estamos nisso por conta própria agora' -, é uma grande virada do que era há 15 anos ."

Os jovens daqui reconhecem que o processo de paz eliminou o fundo político-ideológico das gangues em áreas da classe trabalhadora de Belfast. Tanto os bairros legalistas como os republicanos têm mais em comum com Birmingham ou Los Angeles do que com a Belfast de uma década atrás. "Em qualquer grande cidade você vê gangues controlando as zonas operárias", diz Neil. "Nas nossas, a causa era a religião. Agora é mais uma questão de guerra por território em nossas próprias comunidades."

Com os paramilitares mantendo domínio sobre comunidades de protestantes, e a falta de recursos governamentais para a área social, muitos anos transcorrerão antes que os jovens protestantes da classe trabalhadora possam ter perspectiva de vida mais saudável.